"Tenho músicas ardentes,
Ais do meu amor insano,
Que palpitam mais dormentes
Do que os sons do teu piano!"

Álvares de Azevedo

sábado, 10 de novembro de 2012


         
A festa



O desconhecido:

          Estou no escuro, meus olhos me confundem. Ao meu redor as paredes gargalham; o ambiente me absorve como a terra o faz com a carne. Estou só, aprisionado em um espaço medonho... As paredes parecem se estreitar. Estou recluso em uma sepultura rasa, posso sentir as criaturas noturnas se esgueirando rente às minhas extremidades. O suor escorre em minhas têmporas, unindo meus fios à palidez doentia da face. Meus lábios murmuram uma canção uníssona a que a solidão semeia em meus ouvidos.
          Súbito, um fulgor inconstante surge adiante, entretendo meus olhos esparsos. Todo o ambiente parece iluminar-se, retirando, da sórdida aparência, a máscara enigmática da escuridão; brindando meus sentidos com a decepção da evidência. Não estou só... Antes estivesse. As baratas me parecem à melhor das companhias...

                                                                         ~ ~ ~

          Era uma noite fascinante. As luzes estavam em sintonia com o movimento espontâneo dos corpos alheios. A bebida era farta e diversificada, suplente de todo e qualquer gosto que exceda a normalidade. O fumo era constante, uma cheirosa névoa aparentava engolir os convivas com alguma sofreguidão. A noite fazia-se perfeita. No centro do festejo, um grupo de amigos gozava dos prazeres do divertimento e da boa bebida. Izadora, uma garota discreta, possuidora de belíssimos olhos azulados, arriscava alguns passos de dança com cautela, enquanto seus amigos, visivelmente ébrios, cantarolavam e se esgueiravam às paredes sórdidas e irregulares.
          — Nossa! Olhem o estilo daquele cara! Medonho.
          — Medonho? Cadê? Ah! Ridículo, isso sim. — retrucou o rapaz dançante chamado Fernando.
          — Poxa, eu gostei. Adorei aquela maquiagem forçada, aquele sobretudo gótico. Que você acha, Iza?
          — Hum?
          — O rapaz de sobretudo, que acha dele? Poxa, Iza, hoje você está no mundo da lua!
          — Ah! Nossa! ... Quero dizer: Interessante.
          — Interessante? Vocês duas estão piradas! Aquilo é uma aberração.
          — É impressão minha, ou ele não tira os olhos da Izadora?
          — De mim? Vocês estão loucos!
          — Ih! Acho que o "Dracolino" gostou de você, Iza. — Fernando debochava, brincando com as mãos da garota.
          — Esqueçam o rapaz! Vamos voltar a dançar, por favor!
          — Olhem aqueles olhos centrados. Que horror, miram diretamente o rostinho da Iza. Que arrepio!
          — Parem! Isso já esta passando dos limites.
          — Não olhem agora, mas o Dracolino se levantou e vem vindo em nossa direção...

                                                                             ~ ~ ~
O desconhecido:

          Meus olhos me encaminham a uma vereda quimérica; um manancial de águas límpidas. Tento resistir, o esforço é insuficiente. Sou atraído àqueles olhos celestes como o suicida o é com a maré bravia. Anseio morrer naquelas águas. Ter, em meu peito, o orvalhar de uma singela lágrima; uma gota proveniente daqueles frágeis cristais luzentes.
          Me aproximo com cortesia, ela recua. A moça aparenta temer o meu progresso... Seus olhos encontram o chão da taverna; seus lábios sussurram palavras amargas. Palavras displicentes, desprezíveis. Seus receios induzem ao recuo, porém a curiosidade apenas salienta a volúpia do mistério. Suas delicadas mãos estremecem... A proximidade é inevitável e, o meu leve tocar, abominoso. Seu olhar volta-se ao meu, suas órbitas inquietas repreendem o meu ato ousado. Aqueles olhos celestes... Aquelas veredas diáfanas...
          — O que você deseja de mim?
          Ignorei-a, somente. Os vocábulos que os lábios recusavam exprimir, transmiti-os através do olhar, encarando-a, fascinando-a qual o viço de uma rosa ao audaz beija-flor campestre.
          Seus carminados lábios se desunem. Seu hálito perfumado torna-se inconstante. A fantasia parece apossar as suas faculdades. Seu esbelto corpo me fora concedido, qual o orvalho ao borrifar a relva seca. Mas a chuva ainda me é escassa... A tormenta distancia-se qual aquela alma efêmera de mulher.
          — É uma bela noite, não, senhorita? — pergunto, aproximando meus lábios aos seus ouvidos. Ela estremece. Seus olhos parecem perder-se na imensidão sombria daquela galeria.
          Súbito, um ruído estridente e ritmado irrompe nos corredores. A música torna-se animada, entusiasmando todos em seu alcance sonoro.

                                                                           ~ ~ ~


          Lentamente o belo rapaz iniciava seus movimentos, oscilando seu corpo delgado rente os olhos atentos de sua madona. Seus olhos ardiam em lava enquanto suas mãos bailavam, ordenando os sutis, porém expressivos movimentos corporais de Izadora. O conjunto fazia-se deslumbrante, tamanha a exatidão das ações, do deslocamento; dos olhares. Izadora estava entorpecida, perdida na íris grisalha daquele galante sedutor enigmático. O desconhecido a envolvia com os braços, selando seus corpos em uma comunhão a beira do erotismo. Ambos eram eriçados com o toque sutil de seus lábios a cada passagem; cada roçada entre suas maçãs. O fluido do desejo, do delírio, envolvia-os qual uma aura atrevida; um perfume envolvente e metediço.


                                                                          ~ ~ ~

Izadora:

          Que acontece, Deus meu? Que delírio! Posso sentir, gozar os lábios que me espreitam. O movimento é espontâneo; a avidez, inelutável. Que culpa tenho? Tem, o homem, um desejo instintivo, animalesco. Eis o preço por ser feito de carne. Carne e sangue... Sinto o fluído da vida pulsar em minhas veias, minhas artérias. Ele também o sente... Suas narinas; seus olhos parecem excitar-se com a proximidade de meu colo nu. Ai, que insânia! Minha consciência me confunde. Estou só... A corrupção paira meu crânio ingênuo. Anseio o exílio, porém, ele apenas se aproxima...



Bom, uma pequena homenagem à festa Ultra! Morte de nossos conterrâneos. Parabéns!
A inspiração para este conto veio exatamente na última noite de festa, enquanto eu observava algumas figuras simbólicas daquele ambiente obscuro.
Bom, é isso...