Espectro
Foi
em uma noite escura do mês de Julho, no interior de um Estado imortalizado com
as efervescências da inconfidência e os hinos fugidios das penas árcades. Dois
rapazes, ambos na aurora da existência, adentraram um cômodo ridente e bem
iluminado. Ao centro, um rústico fogão à lenha fazia borbulhar de júbilo o
caldo e seus convivas sôfregos e desinteressados; destes, três homens alegres e
loquazes convidavam o olhar analítico de um narrador curioso: o primeiro, de
estatura média e bigodes à moda de outrora, risonho e simpático às conversas
qual o amigo de refeições (de nome semelhante) de Rubião, na obra machadiana. O
segundo, chamado Manuel, sentado do lado oposto de Siqueira, ostentava uma
aparência rude e zombeteira, os olhos profundos e atraentes qual o sumidouro em
grota espelhada. O outro, dessemelhante a qualquer indivíduo presente, mantinha
ao alcance dos lábios ressequidos um copo largo de aguardente, cheio até a
borda. Vetusto e delgado, o último sujeito aparentava saído da sepultura à
bebida vulcânica — morbígero e pálido qual o mármore funéreo.
O velho ergueu, então, a mão
ossuda e saudou os rapazes com a retirada do chapéu; pode-se ouvir, nas
janelas, o murmurar de um vento gélido e atrevido. Os moços estremeceram.
— Estamos gelados até os ossos!
— Corre, Lita! Fecha a janela
que o frio não costuma pedir licença para entrar. Não vês? Os meninos já têm as
pernas bambas.
— De tanto correr! — exclamou o
moço ofegante.
— Acaso as vacas os cercaram?
— Ora! E nós lá iríamos correr
de vaca, minha tia?
Curioso, o velho ergueu-se da terra
gélida e mirou-os com resolução, um sorriso débil e satírico irrompeu sereno
das profundezas do cadafalso:
— Dá gosto ver rapaz assim, com
a perna bamba! Pois entrem, rapazes! Bebam um gole conosco. A casa é vossa,
literalmente. — e deixou-se cair novamente, é confortável a terra afofada por inchada.
Os moços uniram-se aos convivas
nos assentos e nas goladas.
— Acabamos de voltar do alto
da grota, logo acima da antiga fazenda dos Quinquins.
— Ah, os Quinquins! A morte é
viajante sedenta, sempre batendo à porta de família honesta. A casa continua de
pé? — indagou Siqueira, gesticulando.
— Continua, mas deixe que
termine, sim? Na grota acendemos uma pequena fogueira e sentamos ao relento, a
observar o firmamento...
— Eis que a treva ergueu-se
qual o vulto de um morcego sob o fulgor de um candelabro... — ergueu a voz o
segundo rapaz — a noite era escura. A sombra dos arvoredos parecia intimidar os
olhos mais dispersos e espavoridos; a névoa densa encobria o caminho.
Sentamo-nos, pois. Ao longe podíamos ouvir o burburinho de uma família que
jantava.
— Ora! A noite é sombria e a
pastagem é vasta qual a maré em calmaria: pode-se ouvir o sussurrar das conchas
— afirmou Manuel com a cimeira do copo por entre a polpa dos lábios.
— Mas o teu ceticismo é célere
e afiado! Tens, entre os dentes, a língua e um bocado de aguardente. Engana-te,
meu tio!
— Eis que o burburinho
tornou-se voz com a proximidade... — sussurrou o moço mais novo.
— Mas uma voz confusa e mal
articulada, como se o sujeito discursasse sob a água. Erguemo-nos e aguardamos
irromper da floresta o viajante noturno. Nada, o silêncio voltara a ser
soberano. Optamos, então, por apagar a fogueira e retornar à estrada...
— Foi aí que, de repente,
elevou-se a voz demoníaca às alturas, como se a língua dançasse ao pé do
ouvido; dezenas de galhos e gravetos despencaram das copas enegrecidas; o vulto
imenso de um morcego sobrevoou nossas cabeças qual o abutre faminto sobre o
cadáver e, por fim, a fogueira, extinta, elevou a sua chama à altura de um
homem.
Há algum tempo disperso, o
velho Luiz ergueu-se da mesa e sentou-se à beirada do fogão. Suas órbitas
pareciam enunciar a coloração avermelhada das tragédias, enquanto a boca
entreaberta descobria o homem absorto em seus pensamentos. Siqueira, por outro
lado, ocupava-se em escutar com atenção — a curiosidade lhe roia o miolo da
discrição. Manuel ouvia, mas desacreditava qual o homem que se ri de escárnio
perante a imagem de Deus:
— Que delírio! — e o homem riu
com a boca cheia de líquido.
— Ora, Manuel, a história
diverte! Continuem, moços, pois tenho curiosidade para com o desfecho.
— Corremos como loucos, cada
qual com as suas pernas trocadas. Descemos o morro qual uma rocha que despenca
sem controle. Corremos, tropeçamos e rolamos. Ainda agora o meu chapéu vacila,
abraçado à cerca de arame farpado. Enfim chegamos à estrada.
— A história finda por aí? —
indagou o velho enfastiado.
— Há aqui uma inversão de
papéis: o homem vetusto impacienta-se com a curta história de um moço. Eu sou
Satã, tu és Macário. Reluz, sobre o meu escalpo, a lâmpada ofuscada do gênio
ancião. Tem-se, sobre a fibra, a poeira da atemporalidade.
— O desfecho me é desprezível,
rapaz. Mas conta! Alguns ainda salivam de ansiedade.
O velho ergueu-se novamente e,
com o auxílio de um apoio, pendurou-se ao peitoril da janela.
— Ah,
mas o desfecho até o senhor quererá ouvir, Luiz. Estou certo! Guarda o teu
tédio, a tua impaciência, como o fizeram os moços na taverna. Senta, fuma e
escuta: precipitamo-nos na estrada como um rebanho ao ser conduzido. Cessamos o
passo acelerado já entre nossas terras, na encruzilhada com os Diogos. Eis aí a
hora fatídica, meu tios! Eis aí o crânio apodrecido de Nauza, a mulher do
pintor: Ao erguer o olhar para o alto, para a grota, uma luz fantasmagórica
inflamou entre as árvores, um fulgor vasto e hesitante qual a labareda de um
incêndio...
— Oh! Lembro-me ainda agora a
sensação. A íris de Capitu não fora tão resplendente...
— Nem tampouco atraente!
Sobrestada a narração houve um
ruído, uma risada nefasta. O velho Luiz parecia engasgar-se com a hilaridade;
com o escárnio. Todos o encararam durante o ato, alguns com indiscrição. O
riso, então, fora substituído por uma tosse rouca e doentia; seus olhos se
enrubesceram qual metal exposto à brasa de um fogão ardente. Era Hoffmann que
se elevava às alturas!
— A tua caçoada ainda há de
matá-lo, Luiz.
— Ora, mas a satisfação também
nasce com o riso! Não zombo, creio. — respondeu o velho.
— Crê? Na história que contamos há
pouco?
— A franqueza, assim como o
pânico, palpita em vossas órbitas de menino. A vossa história é verídica,
creio. Porém, permitis que eu conte agora outra história?
— Se vier a aprazer os ouvidos.
— Pois bem! Conto-vos que ali,
pouco abaixo da grota, vivia um homem chamado Antônio, também apelidado de
Mudinho. O apelido obviamente surgiu devido a uma deficiência no aparelho vocal
de Antônio. Muitos afirmavam confundir a sua fala com o ruído de um afogamento.
Mudinho morava só.
Certo dia, após ordenhar o gado,
o infortunado homem acendeu o fogão e partiu à cercania de sua casa para
recolher toras de madeira. Subiu, então, à grota e desapareceu. Dois dias após
o ocorrido um homem que o fora visitar achou-o defunto na pastagem, as formigas
já haviam tragado suas órbitas. Sua casa ardera em chamas por uma noite
inteira.
Assombrados, os moços
interviram:
— Estás mentindo! A aguardente
já lhe corrompe a sanidade.
— Alguns afirmam que Antônio sucumbiu devido
ao infarto do miocárdio; outros que a solidão o foi desgastando...
— Enganador!
— Ora, meninos! Tive nas mãos uma das alças de
seu caixão. Apenas três pessoas compareceram ao enterro. Pobre Mudinho!
Luiz fitou, então, o lume do
fogão; a escuridão tomou-lhe pelos braços.