"Tenho músicas ardentes,
Ais do meu amor insano,
Que palpitam mais dormentes
Do que os sons do teu piano!"

Álvares de Azevedo

quinta-feira, 18 de julho de 2013

         
Espectro

          Foi em uma noite escura do mês de Julho, no interior de um Estado imortalizado com as efervescências da inconfidência e os hinos fugidios das penas árcades. Dois rapazes, ambos na aurora da existência, adentraram um cômodo ridente e bem iluminado. Ao centro, um rústico fogão à lenha fazia borbulhar de júbilo o caldo e seus convivas sôfregos e desinteressados; destes, três homens alegres e loquazes convidavam o olhar analítico de um narrador curioso: o primeiro, de estatura média e bigodes à moda de outrora, risonho e simpático às conversas qual o amigo de refeições (de nome semelhante) de Rubião, na obra machadiana. O segundo, chamado Manuel, sentado do lado oposto de Siqueira, ostentava uma aparência rude e zombeteira, os olhos profundos e atraentes qual o sumidouro em grota espelhada. O outro, dessemelhante a qualquer indivíduo presente, mantinha ao alcance dos lábios ressequidos um copo largo de aguardente, cheio até a borda. Vetusto e delgado, o último sujeito aparentava saído da sepultura à bebida vulcânica — morbígero e pálido qual o mármore funéreo. 
          O velho ergueu, então, a mão ossuda e saudou os rapazes com a retirada do chapéu; pode-se ouvir, nas janelas, o murmurar de um vento gélido e atrevido. Os moços estremeceram. 
         — Estamos gelados até os ossos!
         — Corre, Lita! Fecha a janela que o frio não costuma pedir licença para entrar. Não vês? Os meninos já têm as pernas bambas. 
         — De tanto correr! — exclamou o moço ofegante. 
         — Acaso as vacas os cercaram? 
         — Ora! E nós lá iríamos correr de vaca, minha tia? 
          Curioso, o velho ergueu-se da terra gélida e mirou-os com resolução, um sorriso débil e satírico irrompeu sereno das profundezas do cadafalso:
        — Dá gosto ver rapaz assim, com a perna bamba! Pois entrem, rapazes! Bebam um gole conosco. A casa é vossa, literalmente. — e deixou-se cair novamente, é confortável a terra afofada por inchada. 
          Os moços uniram-se aos convivas nos assentos e nas goladas. 
        — Acabamos de voltar do alto da grota, logo acima da antiga fazenda dos Quinquins.
       — Ah, os Quinquins! A morte é viajante sedenta, sempre batendo à porta de família honesta. A casa continua de pé? — indagou Siqueira, gesticulando. 
       — Continua, mas deixe que termine, sim? Na grota acendemos uma pequena fogueira e sentamos ao relento, a observar o firmamento...
        — Eis que a treva ergueu-se qual o vulto de um morcego sob o fulgor de um candelabro... — ergueu a voz o segundo rapaz — a noite era escura. A sombra dos arvoredos parecia intimidar os olhos mais dispersos e espavoridos; a névoa densa encobria o caminho. Sentamo-nos, pois. Ao longe podíamos ouvir o burburinho de uma família que jantava.
       — Ora! A noite é sombria e a pastagem é vasta qual a maré em calmaria: pode-se ouvir o sussurrar das conchas — afirmou Manuel com a cimeira do copo por entre a polpa dos lábios. 
      — Mas o teu ceticismo é célere e afiado! Tens, entre os dentes, a língua e um bocado de aguardente. Engana-te, meu tio! 
       — Eis que o burburinho tornou-se voz com a proximidade... — sussurrou o moço mais novo.
      — Mas uma voz confusa e mal articulada, como se o sujeito discursasse sob a água. Erguemo-nos e aguardamos irromper da floresta o viajante noturno. Nada, o silêncio voltara a ser soberano. Optamos, então, por apagar a fogueira e retornar à estrada...
     — Foi aí que, de repente, elevou-se a voz demoníaca às alturas, como se a língua dançasse ao pé do ouvido; dezenas de galhos e gravetos despencaram das copas enegrecidas; o vulto imenso de um morcego sobrevoou nossas cabeças qual o abutre faminto sobre o cadáver e, por fim, a fogueira, extinta, elevou a sua chama à altura de um homem.
        Há algum tempo disperso, o velho Luiz ergueu-se da mesa e sentou-se à beirada do fogão. Suas órbitas pareciam enunciar a coloração avermelhada das tragédias, enquanto a boca entreaberta descobria o homem absorto em seus pensamentos. Siqueira, por outro lado, ocupava-se em escutar com atenção — a curiosidade lhe roia o miolo da discrição. Manuel ouvia, mas desacreditava qual o homem que se ri de escárnio perante a imagem de Deus:
           — Que delírio! — e o homem riu com a boca cheia de líquido.
           — Ora, Manuel, a história diverte! Continuem, moços, pois tenho curiosidade para com o desfecho. 
        — Corremos como loucos, cada qual com as suas pernas trocadas. Descemos o morro qual uma rocha que despenca sem controle. Corremos, tropeçamos e rolamos. Ainda agora o meu chapéu vacila, abraçado à cerca de arame farpado. Enfim chegamos à estrada.
           — A história finda por aí? — indagou o velho enfastiado. 
         — Há aqui uma inversão de papéis: o homem vetusto impacienta-se com a curta história de um moço. Eu sou Satã, tu és Macário. Reluz, sobre o meu escalpo, a lâmpada ofuscada do gênio ancião. Tem-se, sobre a fibra, a poeira da atemporalidade. 
          — O desfecho me é desprezível, rapaz. Mas conta! Alguns ainda salivam de ansiedade.
          O velho ergueu-se novamente e, com o auxílio de um apoio, pendurou-se ao peitoril da janela. 
      Ah, mas o desfecho até o senhor quererá ouvir, Luiz. Estou certo! Guarda o teu tédio, a tua impaciência, como o fizeram os moços na taverna. Senta, fuma e escuta: precipitamo-nos na estrada como um rebanho ao ser conduzido. Cessamos o passo acelerado já entre nossas terras, na encruzilhada com os Diogos. Eis aí a hora fatídica, meu tios! Eis aí o crânio apodrecido de Nauza, a mulher do pintor: Ao erguer o olhar para o alto, para a grota, uma luz fantasmagórica inflamou entre as árvores, um fulgor vasto e hesitante qual a labareda de um incêndio...
          — Oh! Lembro-me ainda agora a sensação. A íris de Capitu não fora tão resplendente...
          — Nem tampouco atraente! 
          Sobrestada a narração houve um ruído, uma risada nefasta. O velho Luiz parecia engasgar-se com a hilaridade; com o escárnio. Todos o encararam durante o ato, alguns com indiscrição. O riso, então, fora substituído por uma tosse rouca e doentia; seus olhos se enrubesceram qual metal exposto à brasa de um fogão ardente. Era Hoffmann que se elevava às alturas!
          — A tua caçoada ainda há de matá-lo, Luiz.
          — Ora, mas a satisfação também nasce com o riso! Não zombo, creio. — respondeu o velho.
          — Crê? Na história que contamos há pouco? 
          — A franqueza, assim como o pânico, palpita em vossas órbitas de menino. A vossa história é verídica, creio. Porém, permitis que eu conte agora outra história? 
          — Se vier a aprazer os ouvidos.
         — Pois bem! Conto-vos que ali, pouco abaixo da grota, vivia um homem chamado Antônio, também apelidado de Mudinho. O apelido obviamente surgiu devido a uma deficiência no aparelho vocal de Antônio. Muitos afirmavam confundir a sua fala com o ruído de um afogamento. Mudinho morava só. 
       Certo dia, após ordenhar o gado, o infortunado homem acendeu o fogão e partiu à cercania de sua casa para recolher toras de madeira. Subiu, então, à grota e desapareceu. Dois dias após o ocorrido um homem que o fora visitar achou-o defunto na pastagem, as formigas já haviam tragado suas órbitas. Sua casa ardera em chamas por uma noite inteira. 
         Assombrados, os moços interviram:
         — Estás mentindo! A aguardente já lhe corrompe a sanidade. 
       — Alguns afirmam que Antônio sucumbiu devido ao infarto do miocárdio; outros que a solidão o foi desgastando...
          — Enganador!
         — Ora, meninos! Tive nas mãos uma das alças de seu caixão. Apenas três pessoas compareceram ao enterro. Pobre Mudinho!
          Luiz fitou, então, o lume do fogão; a escuridão tomou-lhe pelos braços. 

domingo, 9 de junho de 2013

Não julgueis o meu poema bobinho. rs
Acho que é a saudade da pena entre os dedos... 


"Soluços

Eu estou agora ébrio. À turba:
Engoli-vos as vossas etiquetas. 
Na floresta, das copas matriarca,
Sois o casco, algoz das violetas. 

Não julgueis, ó órbita de múltiplas faces,
O palor e murchidão da superfície. 
Meu olhar escurece sobre as laudas
Qual a lua ao ocultar-se nas planícies. 

Esvaiu-se o ardor dos contatos!, 
Qual a chuva em espelho corrente...
Das meiguices; dos dedos trançados
Não há sonho, nem raio fulgente. 

Meu amor tu levaste em teu peito... 
A solidão ao espreitar-me simulada.
Nas lacunas, no vácuo de meu âmago
Vejo a morte a sorrir-me admirada."

Murillo Homem