"Tenho músicas ardentes,
Ais do meu amor insano,
Que palpitam mais dormentes
Do que os sons do teu piano!"

Álvares de Azevedo

quinta-feira, 18 de julho de 2013

         
Espectro

          Foi em uma noite escura do mês de Julho, no interior de um Estado imortalizado com as efervescências da inconfidência e os hinos fugidios das penas árcades. Dois rapazes, ambos na aurora da existência, adentraram um cômodo ridente e bem iluminado. Ao centro, um rústico fogão à lenha fazia borbulhar de júbilo o caldo e seus convivas sôfregos e desinteressados; destes, três homens alegres e loquazes convidavam o olhar analítico de um narrador curioso: o primeiro, de estatura média e bigodes à moda de outrora, risonho e simpático às conversas qual o amigo de refeições (de nome semelhante) de Rubião, na obra machadiana. O segundo, chamado Manuel, sentado do lado oposto de Siqueira, ostentava uma aparência rude e zombeteira, os olhos profundos e atraentes qual o sumidouro em grota espelhada. O outro, dessemelhante a qualquer indivíduo presente, mantinha ao alcance dos lábios ressequidos um copo largo de aguardente, cheio até a borda. Vetusto e delgado, o último sujeito aparentava saído da sepultura à bebida vulcânica — morbígero e pálido qual o mármore funéreo. 
          O velho ergueu, então, a mão ossuda e saudou os rapazes com a retirada do chapéu; pode-se ouvir, nas janelas, o murmurar de um vento gélido e atrevido. Os moços estremeceram. 
         — Estamos gelados até os ossos!
         — Corre, Lita! Fecha a janela que o frio não costuma pedir licença para entrar. Não vês? Os meninos já têm as pernas bambas. 
         — De tanto correr! — exclamou o moço ofegante. 
         — Acaso as vacas os cercaram? 
         — Ora! E nós lá iríamos correr de vaca, minha tia? 
          Curioso, o velho ergueu-se da terra gélida e mirou-os com resolução, um sorriso débil e satírico irrompeu sereno das profundezas do cadafalso:
        — Dá gosto ver rapaz assim, com a perna bamba! Pois entrem, rapazes! Bebam um gole conosco. A casa é vossa, literalmente. — e deixou-se cair novamente, é confortável a terra afofada por inchada. 
          Os moços uniram-se aos convivas nos assentos e nas goladas. 
        — Acabamos de voltar do alto da grota, logo acima da antiga fazenda dos Quinquins.
       — Ah, os Quinquins! A morte é viajante sedenta, sempre batendo à porta de família honesta. A casa continua de pé? — indagou Siqueira, gesticulando. 
       — Continua, mas deixe que termine, sim? Na grota acendemos uma pequena fogueira e sentamos ao relento, a observar o firmamento...
        — Eis que a treva ergueu-se qual o vulto de um morcego sob o fulgor de um candelabro... — ergueu a voz o segundo rapaz — a noite era escura. A sombra dos arvoredos parecia intimidar os olhos mais dispersos e espavoridos; a névoa densa encobria o caminho. Sentamo-nos, pois. Ao longe podíamos ouvir o burburinho de uma família que jantava.
       — Ora! A noite é sombria e a pastagem é vasta qual a maré em calmaria: pode-se ouvir o sussurrar das conchas — afirmou Manuel com a cimeira do copo por entre a polpa dos lábios. 
      — Mas o teu ceticismo é célere e afiado! Tens, entre os dentes, a língua e um bocado de aguardente. Engana-te, meu tio! 
       — Eis que o burburinho tornou-se voz com a proximidade... — sussurrou o moço mais novo.
      — Mas uma voz confusa e mal articulada, como se o sujeito discursasse sob a água. Erguemo-nos e aguardamos irromper da floresta o viajante noturno. Nada, o silêncio voltara a ser soberano. Optamos, então, por apagar a fogueira e retornar à estrada...
     — Foi aí que, de repente, elevou-se a voz demoníaca às alturas, como se a língua dançasse ao pé do ouvido; dezenas de galhos e gravetos despencaram das copas enegrecidas; o vulto imenso de um morcego sobrevoou nossas cabeças qual o abutre faminto sobre o cadáver e, por fim, a fogueira, extinta, elevou a sua chama à altura de um homem.
        Há algum tempo disperso, o velho Luiz ergueu-se da mesa e sentou-se à beirada do fogão. Suas órbitas pareciam enunciar a coloração avermelhada das tragédias, enquanto a boca entreaberta descobria o homem absorto em seus pensamentos. Siqueira, por outro lado, ocupava-se em escutar com atenção — a curiosidade lhe roia o miolo da discrição. Manuel ouvia, mas desacreditava qual o homem que se ri de escárnio perante a imagem de Deus:
           — Que delírio! — e o homem riu com a boca cheia de líquido.
           — Ora, Manuel, a história diverte! Continuem, moços, pois tenho curiosidade para com o desfecho. 
        — Corremos como loucos, cada qual com as suas pernas trocadas. Descemos o morro qual uma rocha que despenca sem controle. Corremos, tropeçamos e rolamos. Ainda agora o meu chapéu vacila, abraçado à cerca de arame farpado. Enfim chegamos à estrada.
           — A história finda por aí? — indagou o velho enfastiado. 
         — Há aqui uma inversão de papéis: o homem vetusto impacienta-se com a curta história de um moço. Eu sou Satã, tu és Macário. Reluz, sobre o meu escalpo, a lâmpada ofuscada do gênio ancião. Tem-se, sobre a fibra, a poeira da atemporalidade. 
          — O desfecho me é desprezível, rapaz. Mas conta! Alguns ainda salivam de ansiedade.
          O velho ergueu-se novamente e, com o auxílio de um apoio, pendurou-se ao peitoril da janela. 
      Ah, mas o desfecho até o senhor quererá ouvir, Luiz. Estou certo! Guarda o teu tédio, a tua impaciência, como o fizeram os moços na taverna. Senta, fuma e escuta: precipitamo-nos na estrada como um rebanho ao ser conduzido. Cessamos o passo acelerado já entre nossas terras, na encruzilhada com os Diogos. Eis aí a hora fatídica, meu tios! Eis aí o crânio apodrecido de Nauza, a mulher do pintor: Ao erguer o olhar para o alto, para a grota, uma luz fantasmagórica inflamou entre as árvores, um fulgor vasto e hesitante qual a labareda de um incêndio...
          — Oh! Lembro-me ainda agora a sensação. A íris de Capitu não fora tão resplendente...
          — Nem tampouco atraente! 
          Sobrestada a narração houve um ruído, uma risada nefasta. O velho Luiz parecia engasgar-se com a hilaridade; com o escárnio. Todos o encararam durante o ato, alguns com indiscrição. O riso, então, fora substituído por uma tosse rouca e doentia; seus olhos se enrubesceram qual metal exposto à brasa de um fogão ardente. Era Hoffmann que se elevava às alturas!
          — A tua caçoada ainda há de matá-lo, Luiz.
          — Ora, mas a satisfação também nasce com o riso! Não zombo, creio. — respondeu o velho.
          — Crê? Na história que contamos há pouco? 
          — A franqueza, assim como o pânico, palpita em vossas órbitas de menino. A vossa história é verídica, creio. Porém, permitis que eu conte agora outra história? 
          — Se vier a aprazer os ouvidos.
         — Pois bem! Conto-vos que ali, pouco abaixo da grota, vivia um homem chamado Antônio, também apelidado de Mudinho. O apelido obviamente surgiu devido a uma deficiência no aparelho vocal de Antônio. Muitos afirmavam confundir a sua fala com o ruído de um afogamento. Mudinho morava só. 
       Certo dia, após ordenhar o gado, o infortunado homem acendeu o fogão e partiu à cercania de sua casa para recolher toras de madeira. Subiu, então, à grota e desapareceu. Dois dias após o ocorrido um homem que o fora visitar achou-o defunto na pastagem, as formigas já haviam tragado suas órbitas. Sua casa ardera em chamas por uma noite inteira. 
         Assombrados, os moços interviram:
         — Estás mentindo! A aguardente já lhe corrompe a sanidade. 
       — Alguns afirmam que Antônio sucumbiu devido ao infarto do miocárdio; outros que a solidão o foi desgastando...
          — Enganador!
         — Ora, meninos! Tive nas mãos uma das alças de seu caixão. Apenas três pessoas compareceram ao enterro. Pobre Mudinho!
          Luiz fitou, então, o lume do fogão; a escuridão tomou-lhe pelos braços. 

domingo, 9 de junho de 2013

Não julgueis o meu poema bobinho. rs
Acho que é a saudade da pena entre os dedos... 


"Soluços

Eu estou agora ébrio. À turba:
Engoli-vos as vossas etiquetas. 
Na floresta, das copas matriarca,
Sois o casco, algoz das violetas. 

Não julgueis, ó órbita de múltiplas faces,
O palor e murchidão da superfície. 
Meu olhar escurece sobre as laudas
Qual a lua ao ocultar-se nas planícies. 

Esvaiu-se o ardor dos contatos!, 
Qual a chuva em espelho corrente...
Das meiguices; dos dedos trançados
Não há sonho, nem raio fulgente. 

Meu amor tu levaste em teu peito... 
A solidão ao espreitar-me simulada.
Nas lacunas, no vácuo de meu âmago
Vejo a morte a sorrir-me admirada."

Murillo Homem

sábado, 10 de novembro de 2012


         
A festa



O desconhecido:

          Estou no escuro, meus olhos me confundem. Ao meu redor as paredes gargalham; o ambiente me absorve como a terra o faz com a carne. Estou só, aprisionado em um espaço medonho... As paredes parecem se estreitar. Estou recluso em uma sepultura rasa, posso sentir as criaturas noturnas se esgueirando rente às minhas extremidades. O suor escorre em minhas têmporas, unindo meus fios à palidez doentia da face. Meus lábios murmuram uma canção uníssona a que a solidão semeia em meus ouvidos.
          Súbito, um fulgor inconstante surge adiante, entretendo meus olhos esparsos. Todo o ambiente parece iluminar-se, retirando, da sórdida aparência, a máscara enigmática da escuridão; brindando meus sentidos com a decepção da evidência. Não estou só... Antes estivesse. As baratas me parecem à melhor das companhias...

                                                                         ~ ~ ~

          Era uma noite fascinante. As luzes estavam em sintonia com o movimento espontâneo dos corpos alheios. A bebida era farta e diversificada, suplente de todo e qualquer gosto que exceda a normalidade. O fumo era constante, uma cheirosa névoa aparentava engolir os convivas com alguma sofreguidão. A noite fazia-se perfeita. No centro do festejo, um grupo de amigos gozava dos prazeres do divertimento e da boa bebida. Izadora, uma garota discreta, possuidora de belíssimos olhos azulados, arriscava alguns passos de dança com cautela, enquanto seus amigos, visivelmente ébrios, cantarolavam e se esgueiravam às paredes sórdidas e irregulares.
          — Nossa! Olhem o estilo daquele cara! Medonho.
          — Medonho? Cadê? Ah! Ridículo, isso sim. — retrucou o rapaz dançante chamado Fernando.
          — Poxa, eu gostei. Adorei aquela maquiagem forçada, aquele sobretudo gótico. Que você acha, Iza?
          — Hum?
          — O rapaz de sobretudo, que acha dele? Poxa, Iza, hoje você está no mundo da lua!
          — Ah! Nossa! ... Quero dizer: Interessante.
          — Interessante? Vocês duas estão piradas! Aquilo é uma aberração.
          — É impressão minha, ou ele não tira os olhos da Izadora?
          — De mim? Vocês estão loucos!
          — Ih! Acho que o "Dracolino" gostou de você, Iza. — Fernando debochava, brincando com as mãos da garota.
          — Esqueçam o rapaz! Vamos voltar a dançar, por favor!
          — Olhem aqueles olhos centrados. Que horror, miram diretamente o rostinho da Iza. Que arrepio!
          — Parem! Isso já esta passando dos limites.
          — Não olhem agora, mas o Dracolino se levantou e vem vindo em nossa direção...

                                                                             ~ ~ ~
O desconhecido:

          Meus olhos me encaminham a uma vereda quimérica; um manancial de águas límpidas. Tento resistir, o esforço é insuficiente. Sou atraído àqueles olhos celestes como o suicida o é com a maré bravia. Anseio morrer naquelas águas. Ter, em meu peito, o orvalhar de uma singela lágrima; uma gota proveniente daqueles frágeis cristais luzentes.
          Me aproximo com cortesia, ela recua. A moça aparenta temer o meu progresso... Seus olhos encontram o chão da taverna; seus lábios sussurram palavras amargas. Palavras displicentes, desprezíveis. Seus receios induzem ao recuo, porém a curiosidade apenas salienta a volúpia do mistério. Suas delicadas mãos estremecem... A proximidade é inevitável e, o meu leve tocar, abominoso. Seu olhar volta-se ao meu, suas órbitas inquietas repreendem o meu ato ousado. Aqueles olhos celestes... Aquelas veredas diáfanas...
          — O que você deseja de mim?
          Ignorei-a, somente. Os vocábulos que os lábios recusavam exprimir, transmiti-os através do olhar, encarando-a, fascinando-a qual o viço de uma rosa ao audaz beija-flor campestre.
          Seus carminados lábios se desunem. Seu hálito perfumado torna-se inconstante. A fantasia parece apossar as suas faculdades. Seu esbelto corpo me fora concedido, qual o orvalho ao borrifar a relva seca. Mas a chuva ainda me é escassa... A tormenta distancia-se qual aquela alma efêmera de mulher.
          — É uma bela noite, não, senhorita? — pergunto, aproximando meus lábios aos seus ouvidos. Ela estremece. Seus olhos parecem perder-se na imensidão sombria daquela galeria.
          Súbito, um ruído estridente e ritmado irrompe nos corredores. A música torna-se animada, entusiasmando todos em seu alcance sonoro.

                                                                           ~ ~ ~


          Lentamente o belo rapaz iniciava seus movimentos, oscilando seu corpo delgado rente os olhos atentos de sua madona. Seus olhos ardiam em lava enquanto suas mãos bailavam, ordenando os sutis, porém expressivos movimentos corporais de Izadora. O conjunto fazia-se deslumbrante, tamanha a exatidão das ações, do deslocamento; dos olhares. Izadora estava entorpecida, perdida na íris grisalha daquele galante sedutor enigmático. O desconhecido a envolvia com os braços, selando seus corpos em uma comunhão a beira do erotismo. Ambos eram eriçados com o toque sutil de seus lábios a cada passagem; cada roçada entre suas maçãs. O fluido do desejo, do delírio, envolvia-os qual uma aura atrevida; um perfume envolvente e metediço.


                                                                          ~ ~ ~

Izadora:

          Que acontece, Deus meu? Que delírio! Posso sentir, gozar os lábios que me espreitam. O movimento é espontâneo; a avidez, inelutável. Que culpa tenho? Tem, o homem, um desejo instintivo, animalesco. Eis o preço por ser feito de carne. Carne e sangue... Sinto o fluído da vida pulsar em minhas veias, minhas artérias. Ele também o sente... Suas narinas; seus olhos parecem excitar-se com a proximidade de meu colo nu. Ai, que insânia! Minha consciência me confunde. Estou só... A corrupção paira meu crânio ingênuo. Anseio o exílio, porém, ele apenas se aproxima...



Bom, uma pequena homenagem à festa Ultra! Morte de nossos conterrâneos. Parabéns!
A inspiração para este conto veio exatamente na última noite de festa, enquanto eu observava algumas figuras simbólicas daquele ambiente obscuro.
Bom, é isso...

segunda-feira, 15 de outubro de 2012


Eis aqui uma pequena crítica acerca do meu primeiro semestre de faculdade.
Redigida em 16/09/2011



   





"Caliban"

          "Silêncio! A todos os que brindam com vossa presença este sombrio cômodo de minha existência, iluminado com o lustre dourado do pensamento crítico. Ouvi atentos, quimeras disformes, atormentadas e obsessas pelo tédio: Eis o manifesto que exala da essência sublime do pensamento; o desvendar da órbita ofuscada com a privação da avaliação; o sentimentalismo do homem, aflorado em vocábulos de sanidade contestável. Ouvi atentos cada parágrafo, cada analogia advinda das profundezas obscuras da contestação eloquente! Ouvi, malditos."


          Sobre o estéril solo da capital livre de umidade ergue-se a fortaleza de concreto, sustentada sob os monótonos véus da inércia que habita sorrateira a época. O interior, residido por milhares de almas transeuntes, aparenta descolar-se, desfazer-se, enquanto as vozes do conhecimento transpassam o limite pálido da estrutura. Embalde! Deixemos à custa do estudante o esqueleto e partamos à própria ignorância do corpo discente:
           Inspirado com as páginas de correspondência do mais sublime poeta brasileiro, mancebo injuriado com as torpezas que rondavam as mentes caipiras da época, inicio a autópsia minuciosa deste organismo túrbido e despreparado, elevando à órbita da crítica alguns indivíduos de notável ambição ao aparecimento. Unidas, fisicamente, pelas dobras e cãs que exprimem de modo inclemente os árduos anos de vivência, há muito me surpreende e faz rir o simplório conjunto de senhoras residente neste primeiro período de faculdade. Conquanto vastas em acervos de ensaios existenciais, aparentam emitir singela fraqueza e inabilidade quando questionadas acerca dos assuntos didáticos. Soterrado há quase um século sob o solo gélido, Émile Durkheim revolveu-se em sua sepultura ao gozar, da obscuridade, a seguinte indagação: Durkheim não é uma mulher? Pobres coitadas!
          Voltemo-nos ,de imediato, ao escasso e tangente conjunto de rapazes residentes no primeiro semestre do curso de Direito, na qual genericamente estou incluído. Conhecendo-os à distância, tal qual o combatente com o seu inimigo — aflorado em um estudo minucioso das vocações — batizo desinteressado tal conjunto. Conquanto os lábios gélidos e vorazes da incapacidade insistirem em beijar aqueles à beira do precipício da ignorância, há ainda, habitando as fronteiras sombrias da escuridão, escasso conjunto de homens ainda interessados às volúpias do saber. Embalde! Ainda longínquos os louros da peleja.


                                                                     ~ ~ ~


         Oh! Estaria este jovem desvairado? Estaria ele envolto no lodo pútrido da arrogância? Ou, dentre a turba de estúpidos lampejos, seria ele o lustre dourado ornamentado em diamantes? Tolice! Do ventre da rameira surge intocada virgem; o sopro da estupidez costuma poupar uma das faces dos gêmeos. Conquanto, entre as ruelas ignóbeis do academicismo, povoadas por indivíduos arraigados nas gozações; nas volúpias corpóreas, há também um fulgor célebre e escasso, faísca sedenta ao celeste jarro da competência, do saber, inquilina da profundeza do crânio aprendiz. Eis, então, uma dualidade: Duas vertentes de pensamento e maturidade coexistindo sobre a mesma superfície. Quanto aos competentes não mais me estenderei... Vossa fulgência é demasiado mérito.


                                                                      ~ ~ ~

          Por fim, ainda explorando a simploriedade do extenso conjunto de discentes — discípulos ignorantes de uma eterna sabedoria — voltemo-nos, agora, ao bater das lúridas asas angélicas; voltemo-nos à inspiração eterna dos convivas aprisionados no primor dos beijos alcoólicos, embrulhados entre as rústicas paredes de um estabelecimento precário. Aos motivos, tão belos e poéticos, que obrigaram Werther a introduzir no próprio crânio a centelha metálica de um amor celerado. As mulheres, meus caríssimos! Mulheres... Não as maldigam! Seres tão plácidos e de natureza exímia!  ...


Não me recordo dos motivos que me obrigaram a cessar estes escritos. Bom, isso é tudo.



segunda-feira, 8 de outubro de 2012


Inconstância




          Os céus se evadem; o sol embuça a face dourada entre o leito argênteo. A manhã faz-se fria, embaçada... Doentia. Creio a natureza, espontânea, lamentar-se em sons, gemidos alheios. As aves clamam seus hinos perpétuos com o desalento entranhado na mais aguda das notas. A natureza expõe suas lágrimas quando o homem as reclusa.
          Estou deitado, confortável, sobre a raiz disforme de um majestoso carvalho. Nada me inquieta, nem mesmo o roçar atrevido de seus desfolhar em meus arfantes lábios ansiosos. Tudo me aflige... O vento aparenta murmurar uma daquelas tristes cantigas que faz ressurgir, no seio da quase indiferença, o manancial exaurido do plangor; que transmuta a tez jubilosa da distração em vincos e lágrimas enxutas. A terra é fria, inclemente... Volto-me para a direita, a rigidez das raízes fere meu frágil corpo delgado. Minhas costelas estalam, estilhaçam... A enfermidade é crescente, agressiva. Penetrante.  Ao ladear-me, um jovem belo, loiro, com as feições perfeitamente detalhadas sob a mais fina das extremidades, adormece sossegado. Seus olhos serenos, azuis como o anil das viçosas Hortências, expiram diante a sonolência trazida no dorso serpejante das fragrâncias primaveris. Seus lábios arquejam. Lábios finíssimos qual a corola de uma flor acanhada. Lábios amenos, que espiram o hálito puro da inocência... Um hálito perfumado em demasia; provocante. Quase não o posso resistir, a proximidade faz a atração incoercível. Vejo seus olhos sorumbáticos; em seus beiços um encanto inelutável...
          — Satã?
          O moço abre apenas uma das órbitas. Sua íris pelágica me engole por inteiro.
          — O que foi, Maneco?
          Acho que estou amando, meu Satã. — uma doce lágrima orvalha minhas maçãs ruborizadas.
          — Me amas, Maneco?
          — Por que o susto? É natural, não? Um homem amar aquele que o acompanha.
          — É, creio eu. — sua face tornara-se corada. Seu olhar perdera-se na mais alta das copas das árvores.
          — Bobo! Não é você, obviamente. Mas diga-me, meu Satã: É amor, não é? Quando a bela figura parece irromper incessantemente em seus pensamentos. Quando se está só, no silêncio, e o único espectro que o acompanha é de suas próprias lágrimas.
          — Eu não sei, confesso. Você me parece maior entendedor, Maneco.
          Por um instante deixei tombar a cabeça e encostá-la ao peito de meu companheiro. Seu coração fremia com celeridade; meus olhos completaram-se em lágrimas. Lágrimas cristalinas... Lágrimas saudosas.
          — Satã... Vês aquele sabiá trovando versinhos na extremidade do carvalho?
          — Hum... Por conhecer-te bem digo que irás comparar tua nova musa às belezas daquele sabiá, estou certo?
          Por um instante meus lábios emudeceram. Um leve tremor se abateu sobre meu peito. A efemeridade parecera tornar-se infindável. Como era fascinante o canto daquela ave melódica... Como era voraz!
          — Maneco?... Maneco!
          — Hum? Desculpe-me... Nossa, que delírio! O que dizia, meu caro?
          — O sabiá, Maneco. Olhe!
          Evito olhar a pequena criatura. Posso apenas ouvir o ruído de suas finas penugens se eriçando enquanto cantarola às gotículas de orvalho. Suas notas parecem invadir-me por inteiro... Meus amores parecem ruir sobre tão magnífica expressão de um sentimento. Desejo fazer daqueles hinos de glória as minhas nênias; minhas elegias. Desejo fazer daqueles vocábulos minhas lágrimas eternas...

Bom, é apenas um trechinho de um longo texto que estou escrevendo. Em breve postarei mais alguma coisinha...
Beijos!

segunda-feira, 1 de outubro de 2012



Brasília aos olhos (sentidos) de Clarice Lispector.


"Minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem de grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite."



(…) Todo um lado de frieza humana que eu tenho, encontro em mim aqui em Brasília, e floresce gélido, potente, força gelada da Natureza. Aqui é o lugar onde os meus crimes (não os piores, mas os que não entenderei em mim), onde os meus crimes não seriam de amor. Vou embora para os meus outros crimes, os que Deus e eu compreendemos. Mas sei que voltarei. Sou atraída aqui pelo que me assusta em mim. Nunca vi nada igual no mundo.


Brasília ainda não tem o homem de Brasília. – Se eu dissesse que Brasília é bonita, veriam imediatamente que gostei da cidade. Mas se digo que Brasília é a imagem de minha insônia, vêem nisso uma acusação; mas a minha insônia não é bonita nem feia – minha insônia sou eu, é vivida, é o meu espanto. Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto deles, e deixaram o espanto inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério.


Brasília é mal-assombrada. É o perfil imóvel de uma coisa. De minha insônia olho pela janela do hotel às três horas da madrugada. Brasília é paisagem da insônia. Nunca adormece. Aqui o ser orgânico não se deteriora. Petrifica-se. Eu queria ver espalhadas por Brasília 500 mil águias do mais negro ônix.

domingo, 30 de setembro de 2012


A Dama das flores 

Continuação.




          Com notável desenvoltura e leveza, a moça irrompeu no salão adornado de mil pétalas rodopiando, deslizando, flutuando sobre o lustroso assoalho de mogno... Repleta em vaidade! Seus olhos pareciam tanger a magnitude do indefinido. Estavam vazios, perdidos na imensidão da plenitude. Estavam apáticos... Olhos vazios; olhos sentidos. Dos céus pendiam lágrimas de chuva; lágrimas de sangue. A cada gotícula de um pranto inexausto novas flores desabrochavam do solo infértil. Eram as flores do éden! Eram lágrimas de poesia... Estava vigente a primavera e sua Deusa era a mais bela das orquídeas.
          A moça erguera os delicados braços e abraçara seus dourados fios sobre a nuca despida. Seus ombros moviam-se em perfeita sintonia com a melodia, e sua estreitíssima cintura, encoberta por negro vestido de seda lisa, aparentava guiar os rebentos em seu célere desenvolvimento. Tudo estava em movimento. Era aquele leito de flores o paraíso; os finos e carminados lábios o fruto ilícito; a impossibilidade, o anátema do homem.
          — A nós a vida em flor, a doce vida
              Recendente de amor!
              Cheia de sonhos, d'esperança e beijos
              E pálido langor! — sussurrava a venusta criatura enquanto galgava delirante o prado viçoso.
          A flores exibiam a formosura da primavera; a moça, no entanto, parecia ir além. Sua beleza, seu âmago... Tudo parecia provir do mistério, enigma que fascina. Que deslumbra. Era o encanto da inocência — a alma prolífera e sedutora — a primavera dos homens.
          — Não posso suportar.
          — O que você...
          Um dos convivas excedeu-se e adentrou aquele templo ridente. A moça cedera seu movimento. Estava estática, uma delicada escultura alabastrina. Seus olhos fixaram-se à figura do rapaz, reprovando-o. Seu olhar tornou-se o ópio e o usufruto... Irresistível.
          — Se importaria se eu a convidasse para uma dança? — indagou o intruso.
          O silêncio fez-se absoluto. Apenas dialogavam os olhares. O rapaz avançou uma passada, o retrocesso era impossível e a atração, deliciosa. Em um audacioso ato tangeu aquela delicada cintura com os dedos; ela afastou-se. Ele insistira, porém as frágeis mãozinhas o rejeitavam. Seus corpos pareciam fundir; pareciam bailar entre a doce sinfonia do estalar de centenas de róseas pétalas cedendo sobre a rigidez do concreto. A desarmonia era lei; o encontro, inadmissível.
          — Que queres de mim, cavalheiro? — murmuraram aqueles lábios vultuosos, embebidos com os eflúvios da melancolia..
          — Uma singela dança apenas, minha bela. Vamos, segure a minha mão. Eu a conduzirei com a suavidade dos ventos ao impelir a nau desnorteada.
          — É impossível... — tapando a boca com suas mimosas mãozinhas; cerrando as pálpebras em um olhar desolado, angustiado. — Eu lamento.
          A dama afastou-se com veemência. Sua voz vibrara com a energia de um trovão. Toda a estrutura parecera sacudida. Instantaneamente o rapaz fora ao chão, seus sentidos eram limitados. A escuridão apossou-se de sua consciência. Um segundo apenas, nada mais... Seu templo quimérico havia ruído. As flores haviam regredido, tornaram-se amargas pessoas, e estas pessoas acotovelavam-se dentre a animosidade do festejo. A desordem era plena. O rapaz ergueu-se, estava isolado. Seu comparsa havia desaparecido dentre as massas e seu anjo jamais viera a existir. A ilusão parecia serrar-lhe as fibras do peito com lâmina cega. Aturdido, subiu o conjunto de degraus estacionado ao centro do ornamentado salão, visando, talvez, o único elemento que viesse a consolá-lo. Ele escorou-se ao peitoril da sacada; seu suor fundia-se às lágrimas de desilusão. Uma brisa suave beijou-lhe as têmporas e, dentre o sumo aprazível, um perfume sutil, quase imperceptível, adejava atrevido e deleitoso. Uma solitária violeta adormecia sossegada sobre o parapeito...