"Tenho músicas ardentes,
Ais do meu amor insano,
Que palpitam mais dormentes
Do que os sons do teu piano!"

Álvares de Azevedo

sábado, 10 de novembro de 2012


         
A festa



O desconhecido:

          Estou no escuro, meus olhos me confundem. Ao meu redor as paredes gargalham; o ambiente me absorve como a terra o faz com a carne. Estou só, aprisionado em um espaço medonho... As paredes parecem se estreitar. Estou recluso em uma sepultura rasa, posso sentir as criaturas noturnas se esgueirando rente às minhas extremidades. O suor escorre em minhas têmporas, unindo meus fios à palidez doentia da face. Meus lábios murmuram uma canção uníssona a que a solidão semeia em meus ouvidos.
          Súbito, um fulgor inconstante surge adiante, entretendo meus olhos esparsos. Todo o ambiente parece iluminar-se, retirando, da sórdida aparência, a máscara enigmática da escuridão; brindando meus sentidos com a decepção da evidência. Não estou só... Antes estivesse. As baratas me parecem à melhor das companhias...

                                                                         ~ ~ ~

          Era uma noite fascinante. As luzes estavam em sintonia com o movimento espontâneo dos corpos alheios. A bebida era farta e diversificada, suplente de todo e qualquer gosto que exceda a normalidade. O fumo era constante, uma cheirosa névoa aparentava engolir os convivas com alguma sofreguidão. A noite fazia-se perfeita. No centro do festejo, um grupo de amigos gozava dos prazeres do divertimento e da boa bebida. Izadora, uma garota discreta, possuidora de belíssimos olhos azulados, arriscava alguns passos de dança com cautela, enquanto seus amigos, visivelmente ébrios, cantarolavam e se esgueiravam às paredes sórdidas e irregulares.
          — Nossa! Olhem o estilo daquele cara! Medonho.
          — Medonho? Cadê? Ah! Ridículo, isso sim. — retrucou o rapaz dançante chamado Fernando.
          — Poxa, eu gostei. Adorei aquela maquiagem forçada, aquele sobretudo gótico. Que você acha, Iza?
          — Hum?
          — O rapaz de sobretudo, que acha dele? Poxa, Iza, hoje você está no mundo da lua!
          — Ah! Nossa! ... Quero dizer: Interessante.
          — Interessante? Vocês duas estão piradas! Aquilo é uma aberração.
          — É impressão minha, ou ele não tira os olhos da Izadora?
          — De mim? Vocês estão loucos!
          — Ih! Acho que o "Dracolino" gostou de você, Iza. — Fernando debochava, brincando com as mãos da garota.
          — Esqueçam o rapaz! Vamos voltar a dançar, por favor!
          — Olhem aqueles olhos centrados. Que horror, miram diretamente o rostinho da Iza. Que arrepio!
          — Parem! Isso já esta passando dos limites.
          — Não olhem agora, mas o Dracolino se levantou e vem vindo em nossa direção...

                                                                             ~ ~ ~
O desconhecido:

          Meus olhos me encaminham a uma vereda quimérica; um manancial de águas límpidas. Tento resistir, o esforço é insuficiente. Sou atraído àqueles olhos celestes como o suicida o é com a maré bravia. Anseio morrer naquelas águas. Ter, em meu peito, o orvalhar de uma singela lágrima; uma gota proveniente daqueles frágeis cristais luzentes.
          Me aproximo com cortesia, ela recua. A moça aparenta temer o meu progresso... Seus olhos encontram o chão da taverna; seus lábios sussurram palavras amargas. Palavras displicentes, desprezíveis. Seus receios induzem ao recuo, porém a curiosidade apenas salienta a volúpia do mistério. Suas delicadas mãos estremecem... A proximidade é inevitável e, o meu leve tocar, abominoso. Seu olhar volta-se ao meu, suas órbitas inquietas repreendem o meu ato ousado. Aqueles olhos celestes... Aquelas veredas diáfanas...
          — O que você deseja de mim?
          Ignorei-a, somente. Os vocábulos que os lábios recusavam exprimir, transmiti-os através do olhar, encarando-a, fascinando-a qual o viço de uma rosa ao audaz beija-flor campestre.
          Seus carminados lábios se desunem. Seu hálito perfumado torna-se inconstante. A fantasia parece apossar as suas faculdades. Seu esbelto corpo me fora concedido, qual o orvalho ao borrifar a relva seca. Mas a chuva ainda me é escassa... A tormenta distancia-se qual aquela alma efêmera de mulher.
          — É uma bela noite, não, senhorita? — pergunto, aproximando meus lábios aos seus ouvidos. Ela estremece. Seus olhos parecem perder-se na imensidão sombria daquela galeria.
          Súbito, um ruído estridente e ritmado irrompe nos corredores. A música torna-se animada, entusiasmando todos em seu alcance sonoro.

                                                                           ~ ~ ~


          Lentamente o belo rapaz iniciava seus movimentos, oscilando seu corpo delgado rente os olhos atentos de sua madona. Seus olhos ardiam em lava enquanto suas mãos bailavam, ordenando os sutis, porém expressivos movimentos corporais de Izadora. O conjunto fazia-se deslumbrante, tamanha a exatidão das ações, do deslocamento; dos olhares. Izadora estava entorpecida, perdida na íris grisalha daquele galante sedutor enigmático. O desconhecido a envolvia com os braços, selando seus corpos em uma comunhão a beira do erotismo. Ambos eram eriçados com o toque sutil de seus lábios a cada passagem; cada roçada entre suas maçãs. O fluido do desejo, do delírio, envolvia-os qual uma aura atrevida; um perfume envolvente e metediço.


                                                                          ~ ~ ~

Izadora:

          Que acontece, Deus meu? Que delírio! Posso sentir, gozar os lábios que me espreitam. O movimento é espontâneo; a avidez, inelutável. Que culpa tenho? Tem, o homem, um desejo instintivo, animalesco. Eis o preço por ser feito de carne. Carne e sangue... Sinto o fluído da vida pulsar em minhas veias, minhas artérias. Ele também o sente... Suas narinas; seus olhos parecem excitar-se com a proximidade de meu colo nu. Ai, que insânia! Minha consciência me confunde. Estou só... A corrupção paira meu crânio ingênuo. Anseio o exílio, porém, ele apenas se aproxima...



Bom, uma pequena homenagem à festa Ultra! Morte de nossos conterrâneos. Parabéns!
A inspiração para este conto veio exatamente na última noite de festa, enquanto eu observava algumas figuras simbólicas daquele ambiente obscuro.
Bom, é isso...

segunda-feira, 15 de outubro de 2012


Eis aqui uma pequena crítica acerca do meu primeiro semestre de faculdade.
Redigida em 16/09/2011



   





"Caliban"

          "Silêncio! A todos os que brindam com vossa presença este sombrio cômodo de minha existência, iluminado com o lustre dourado do pensamento crítico. Ouvi atentos, quimeras disformes, atormentadas e obsessas pelo tédio: Eis o manifesto que exala da essência sublime do pensamento; o desvendar da órbita ofuscada com a privação da avaliação; o sentimentalismo do homem, aflorado em vocábulos de sanidade contestável. Ouvi atentos cada parágrafo, cada analogia advinda das profundezas obscuras da contestação eloquente! Ouvi, malditos."


          Sobre o estéril solo da capital livre de umidade ergue-se a fortaleza de concreto, sustentada sob os monótonos véus da inércia que habita sorrateira a época. O interior, residido por milhares de almas transeuntes, aparenta descolar-se, desfazer-se, enquanto as vozes do conhecimento transpassam o limite pálido da estrutura. Embalde! Deixemos à custa do estudante o esqueleto e partamos à própria ignorância do corpo discente:
           Inspirado com as páginas de correspondência do mais sublime poeta brasileiro, mancebo injuriado com as torpezas que rondavam as mentes caipiras da época, inicio a autópsia minuciosa deste organismo túrbido e despreparado, elevando à órbita da crítica alguns indivíduos de notável ambição ao aparecimento. Unidas, fisicamente, pelas dobras e cãs que exprimem de modo inclemente os árduos anos de vivência, há muito me surpreende e faz rir o simplório conjunto de senhoras residente neste primeiro período de faculdade. Conquanto vastas em acervos de ensaios existenciais, aparentam emitir singela fraqueza e inabilidade quando questionadas acerca dos assuntos didáticos. Soterrado há quase um século sob o solo gélido, Émile Durkheim revolveu-se em sua sepultura ao gozar, da obscuridade, a seguinte indagação: Durkheim não é uma mulher? Pobres coitadas!
          Voltemo-nos ,de imediato, ao escasso e tangente conjunto de rapazes residentes no primeiro semestre do curso de Direito, na qual genericamente estou incluído. Conhecendo-os à distância, tal qual o combatente com o seu inimigo — aflorado em um estudo minucioso das vocações — batizo desinteressado tal conjunto. Conquanto os lábios gélidos e vorazes da incapacidade insistirem em beijar aqueles à beira do precipício da ignorância, há ainda, habitando as fronteiras sombrias da escuridão, escasso conjunto de homens ainda interessados às volúpias do saber. Embalde! Ainda longínquos os louros da peleja.


                                                                     ~ ~ ~


         Oh! Estaria este jovem desvairado? Estaria ele envolto no lodo pútrido da arrogância? Ou, dentre a turba de estúpidos lampejos, seria ele o lustre dourado ornamentado em diamantes? Tolice! Do ventre da rameira surge intocada virgem; o sopro da estupidez costuma poupar uma das faces dos gêmeos. Conquanto, entre as ruelas ignóbeis do academicismo, povoadas por indivíduos arraigados nas gozações; nas volúpias corpóreas, há também um fulgor célebre e escasso, faísca sedenta ao celeste jarro da competência, do saber, inquilina da profundeza do crânio aprendiz. Eis, então, uma dualidade: Duas vertentes de pensamento e maturidade coexistindo sobre a mesma superfície. Quanto aos competentes não mais me estenderei... Vossa fulgência é demasiado mérito.


                                                                      ~ ~ ~

          Por fim, ainda explorando a simploriedade do extenso conjunto de discentes — discípulos ignorantes de uma eterna sabedoria — voltemo-nos, agora, ao bater das lúridas asas angélicas; voltemo-nos à inspiração eterna dos convivas aprisionados no primor dos beijos alcoólicos, embrulhados entre as rústicas paredes de um estabelecimento precário. Aos motivos, tão belos e poéticos, que obrigaram Werther a introduzir no próprio crânio a centelha metálica de um amor celerado. As mulheres, meus caríssimos! Mulheres... Não as maldigam! Seres tão plácidos e de natureza exímia!  ...


Não me recordo dos motivos que me obrigaram a cessar estes escritos. Bom, isso é tudo.



segunda-feira, 8 de outubro de 2012


Inconstância




          Os céus se evadem; o sol embuça a face dourada entre o leito argênteo. A manhã faz-se fria, embaçada... Doentia. Creio a natureza, espontânea, lamentar-se em sons, gemidos alheios. As aves clamam seus hinos perpétuos com o desalento entranhado na mais aguda das notas. A natureza expõe suas lágrimas quando o homem as reclusa.
          Estou deitado, confortável, sobre a raiz disforme de um majestoso carvalho. Nada me inquieta, nem mesmo o roçar atrevido de seus desfolhar em meus arfantes lábios ansiosos. Tudo me aflige... O vento aparenta murmurar uma daquelas tristes cantigas que faz ressurgir, no seio da quase indiferença, o manancial exaurido do plangor; que transmuta a tez jubilosa da distração em vincos e lágrimas enxutas. A terra é fria, inclemente... Volto-me para a direita, a rigidez das raízes fere meu frágil corpo delgado. Minhas costelas estalam, estilhaçam... A enfermidade é crescente, agressiva. Penetrante.  Ao ladear-me, um jovem belo, loiro, com as feições perfeitamente detalhadas sob a mais fina das extremidades, adormece sossegado. Seus olhos serenos, azuis como o anil das viçosas Hortências, expiram diante a sonolência trazida no dorso serpejante das fragrâncias primaveris. Seus lábios arquejam. Lábios finíssimos qual a corola de uma flor acanhada. Lábios amenos, que espiram o hálito puro da inocência... Um hálito perfumado em demasia; provocante. Quase não o posso resistir, a proximidade faz a atração incoercível. Vejo seus olhos sorumbáticos; em seus beiços um encanto inelutável...
          — Satã?
          O moço abre apenas uma das órbitas. Sua íris pelágica me engole por inteiro.
          — O que foi, Maneco?
          Acho que estou amando, meu Satã. — uma doce lágrima orvalha minhas maçãs ruborizadas.
          — Me amas, Maneco?
          — Por que o susto? É natural, não? Um homem amar aquele que o acompanha.
          — É, creio eu. — sua face tornara-se corada. Seu olhar perdera-se na mais alta das copas das árvores.
          — Bobo! Não é você, obviamente. Mas diga-me, meu Satã: É amor, não é? Quando a bela figura parece irromper incessantemente em seus pensamentos. Quando se está só, no silêncio, e o único espectro que o acompanha é de suas próprias lágrimas.
          — Eu não sei, confesso. Você me parece maior entendedor, Maneco.
          Por um instante deixei tombar a cabeça e encostá-la ao peito de meu companheiro. Seu coração fremia com celeridade; meus olhos completaram-se em lágrimas. Lágrimas cristalinas... Lágrimas saudosas.
          — Satã... Vês aquele sabiá trovando versinhos na extremidade do carvalho?
          — Hum... Por conhecer-te bem digo que irás comparar tua nova musa às belezas daquele sabiá, estou certo?
          Por um instante meus lábios emudeceram. Um leve tremor se abateu sobre meu peito. A efemeridade parecera tornar-se infindável. Como era fascinante o canto daquela ave melódica... Como era voraz!
          — Maneco?... Maneco!
          — Hum? Desculpe-me... Nossa, que delírio! O que dizia, meu caro?
          — O sabiá, Maneco. Olhe!
          Evito olhar a pequena criatura. Posso apenas ouvir o ruído de suas finas penugens se eriçando enquanto cantarola às gotículas de orvalho. Suas notas parecem invadir-me por inteiro... Meus amores parecem ruir sobre tão magnífica expressão de um sentimento. Desejo fazer daqueles hinos de glória as minhas nênias; minhas elegias. Desejo fazer daqueles vocábulos minhas lágrimas eternas...

Bom, é apenas um trechinho de um longo texto que estou escrevendo. Em breve postarei mais alguma coisinha...
Beijos!

segunda-feira, 1 de outubro de 2012



Brasília aos olhos (sentidos) de Clarice Lispector.


"Minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem de grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite."



(…) Todo um lado de frieza humana que eu tenho, encontro em mim aqui em Brasília, e floresce gélido, potente, força gelada da Natureza. Aqui é o lugar onde os meus crimes (não os piores, mas os que não entenderei em mim), onde os meus crimes não seriam de amor. Vou embora para os meus outros crimes, os que Deus e eu compreendemos. Mas sei que voltarei. Sou atraída aqui pelo que me assusta em mim. Nunca vi nada igual no mundo.


Brasília ainda não tem o homem de Brasília. – Se eu dissesse que Brasília é bonita, veriam imediatamente que gostei da cidade. Mas se digo que Brasília é a imagem de minha insônia, vêem nisso uma acusação; mas a minha insônia não é bonita nem feia – minha insônia sou eu, é vivida, é o meu espanto. Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto deles, e deixaram o espanto inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério.


Brasília é mal-assombrada. É o perfil imóvel de uma coisa. De minha insônia olho pela janela do hotel às três horas da madrugada. Brasília é paisagem da insônia. Nunca adormece. Aqui o ser orgânico não se deteriora. Petrifica-se. Eu queria ver espalhadas por Brasília 500 mil águias do mais negro ônix.

domingo, 30 de setembro de 2012


A Dama das flores 

Continuação.




          Com notável desenvoltura e leveza, a moça irrompeu no salão adornado de mil pétalas rodopiando, deslizando, flutuando sobre o lustroso assoalho de mogno... Repleta em vaidade! Seus olhos pareciam tanger a magnitude do indefinido. Estavam vazios, perdidos na imensidão da plenitude. Estavam apáticos... Olhos vazios; olhos sentidos. Dos céus pendiam lágrimas de chuva; lágrimas de sangue. A cada gotícula de um pranto inexausto novas flores desabrochavam do solo infértil. Eram as flores do éden! Eram lágrimas de poesia... Estava vigente a primavera e sua Deusa era a mais bela das orquídeas.
          A moça erguera os delicados braços e abraçara seus dourados fios sobre a nuca despida. Seus ombros moviam-se em perfeita sintonia com a melodia, e sua estreitíssima cintura, encoberta por negro vestido de seda lisa, aparentava guiar os rebentos em seu célere desenvolvimento. Tudo estava em movimento. Era aquele leito de flores o paraíso; os finos e carminados lábios o fruto ilícito; a impossibilidade, o anátema do homem.
          — A nós a vida em flor, a doce vida
              Recendente de amor!
              Cheia de sonhos, d'esperança e beijos
              E pálido langor! — sussurrava a venusta criatura enquanto galgava delirante o prado viçoso.
          A flores exibiam a formosura da primavera; a moça, no entanto, parecia ir além. Sua beleza, seu âmago... Tudo parecia provir do mistério, enigma que fascina. Que deslumbra. Era o encanto da inocência — a alma prolífera e sedutora — a primavera dos homens.
          — Não posso suportar.
          — O que você...
          Um dos convivas excedeu-se e adentrou aquele templo ridente. A moça cedera seu movimento. Estava estática, uma delicada escultura alabastrina. Seus olhos fixaram-se à figura do rapaz, reprovando-o. Seu olhar tornou-se o ópio e o usufruto... Irresistível.
          — Se importaria se eu a convidasse para uma dança? — indagou o intruso.
          O silêncio fez-se absoluto. Apenas dialogavam os olhares. O rapaz avançou uma passada, o retrocesso era impossível e a atração, deliciosa. Em um audacioso ato tangeu aquela delicada cintura com os dedos; ela afastou-se. Ele insistira, porém as frágeis mãozinhas o rejeitavam. Seus corpos pareciam fundir; pareciam bailar entre a doce sinfonia do estalar de centenas de róseas pétalas cedendo sobre a rigidez do concreto. A desarmonia era lei; o encontro, inadmissível.
          — Que queres de mim, cavalheiro? — murmuraram aqueles lábios vultuosos, embebidos com os eflúvios da melancolia..
          — Uma singela dança apenas, minha bela. Vamos, segure a minha mão. Eu a conduzirei com a suavidade dos ventos ao impelir a nau desnorteada.
          — É impossível... — tapando a boca com suas mimosas mãozinhas; cerrando as pálpebras em um olhar desolado, angustiado. — Eu lamento.
          A dama afastou-se com veemência. Sua voz vibrara com a energia de um trovão. Toda a estrutura parecera sacudida. Instantaneamente o rapaz fora ao chão, seus sentidos eram limitados. A escuridão apossou-se de sua consciência. Um segundo apenas, nada mais... Seu templo quimérico havia ruído. As flores haviam regredido, tornaram-se amargas pessoas, e estas pessoas acotovelavam-se dentre a animosidade do festejo. A desordem era plena. O rapaz ergueu-se, estava isolado. Seu comparsa havia desaparecido dentre as massas e seu anjo jamais viera a existir. A ilusão parecia serrar-lhe as fibras do peito com lâmina cega. Aturdido, subiu o conjunto de degraus estacionado ao centro do ornamentado salão, visando, talvez, o único elemento que viesse a consolá-lo. Ele escorou-se ao peitoril da sacada; seu suor fundia-se às lágrimas de desilusão. Uma brisa suave beijou-lhe as têmporas e, dentre o sumo aprazível, um perfume sutil, quase imperceptível, adejava atrevido e deleitoso. Uma solitária violeta adormecia sossegada sobre o parapeito... 

quinta-feira, 20 de setembro de 2012



A dama das flores

Olinda.2012

          Era uma noite belíssima do mês de agosto, período aprazível que antecede a primavera. A lua repousava serena em seu leito de nuvens argênteas. Tudo era noite no manto celeste. No horizonte, entre o caule encurvado dos coqueiros, um par de embarcações artesanais adentrava a infinitude das águas; no reino das terras dois convivas pensavam. Eram amigos, o companheirismo e a algazarra os condenava. Estavam a inebriar-se dentre os invasivos e deliciosos vapores do néctar escarlate, confortáveis dentre as arcadas de um paraíso — um éden pretérito; uma alcova de sonhos irrompida através dos lábios do tempo.  Ambos estavam ali em decorrência dos anseios e saudades que costumeiramente estreitam os laços de uma relação, porém, algo mais os incitava a colher aquelas paisagens ornamentadas com as belezas vetustas do passado: a ausência das flores. Na escassez dos frutos polposos o homem contenta-se em sentar-se à sombra do pomar e apenas contemplar o corpo venusto da natureza. Assim agiam aqueles amantes das flores, buscando, no barro, a fertilidade e a vida que lhes era faltosa.
          Infortunadamente, em consonância com o afoito galgar das estrelas caminhava o tempo. A hora era alta e as estações cessariam o transporte. Era necessário partir e, conjuntamente, assim procederam. À noite e a ebriedade os guiavam dentre os jardins tortuosos e ressequidos. Súbito houve um brado, um dos convivas havia cessado as passadas. Tudo era silêncio, as ruas dormiam... Um anjo cantarolava sobre os degraus de um monumento. Um anjo? Sim — refletiram encantados. Um anjo louro de pele alabastrina e olhos celestes. Olhos de um azul tão intenso, tão atraentes e impiedosos qual a ressaca dos mares límpidos e bravios. Um anjo? Não — refutaram. É a mulher, no ventre da terra, o perfeito reflexo da transcendência.
          Os homens pasmaram; a moça enrubesceu, não pelo fato de ser contemplada, mas em razão da indiscrição com que a admiravam. Estavam fascinados, atraídos por força magnética dissonante a natureza humana. A moça ergueu-se com compostura. Suas mãos traziam um objeto esguio, com a coloração purpúrea espaçada com perfeição. Seus olhos fremiam em lágrimas perfumadas, recendentes qual o conjunto de pétalas que trazia sobre o peito arfante. À noite os engoliu...


                                                                       ~ ~ ~

          — Levanta! Acorda!
          — O que? Eu adormeci?
          — Nós adormecemos.
          A noite era alta. Jaziam nas pedras as flores que outrora dormiam no seio da fertilidade. A ausência tornara-se soberana, porém o bálsamo da matéria fazia da maresia uma fragrância deliciosa. Olinda tornara-se um pulquérrimo jardim perfumado, e aquelas singelas violetas nada tinham a ver. O aroma parecia advindo do colo petulante da própria perfeição do ser, e ambos tinham conhecimento dos fatos antecedentes àquele desfalecimento involuntário. Fez-se daí, então, um alvoroço: ambos partiram, dentre as insignes ruelas de um tempo já findo, em uma busca desvairada, aparentando seguir os comandos de um instinto há muito esquecido dentre as várias etapas da evolução humana. Eram, agora, um conjunto de seres alados, guiados através da essência inelutável, em busca do viço silvestre das flores.
          A noite galgava... O ruído sensato da quietude parecia confundir os sentidos. A impaciência tornara-se insuportável. Aos poucos aquele delicioso encontro parecia ruir sob o vestígio amargo da ilusão. A fantasia era intolerável, não por ser uma quimera, mas sim, pois a realidade, mesmo com seus cruéis atributos, tornava-se a mais bela das circunstâncias.
          — Não adianta, meu amigo. O fato tornou-se uma quimera!
          Seus joelhos cederam conjuntamente. A consciência parecia esvair-se como as águas de um rio intermitente. Suas lágrimas fundiam-se à umidade das marés e, como a ave que mergulha ao encontro das águas, almejou, selar assim, o seu destino.
          — Fiz-me um tolo!
          — Escuta um pouco! Ouves este ruído?
          — Que ruído? O mar parece gritar em meus ouvidos.
          — Esta música. Escuta. Parece o dedilhar das cordas de uma harpa. Escuta! Vai ficando mais veloz, agora aparenta fazer parte do repertório de um baile. 
          — Uma composição? Sim. De onde vem? Parece distante.
          — Parece soar ao pé dos meus ouvidos.
          Um pouco adiante, à esquerda de uma singela igrejinha, um rústico edifício ornamentado emitia as toadas de uma orquestra. Sua fachada era lustrosa, galante... Sedutora.
          Um dos convivas aproximou-se com discrição e, sobre a ponta dos pés ergueu seus olhos à altura de uma fresta. Um aroma agradável, em consonância com a harmonia oriunda das vibrantes cordas do instrumento, furtou seus sentidos da posse veemente do ceticismo. Estava estupefato. Há pouco ficara fascinado... A comparação, diante aquele presente encanto, fazia-se impossível. Que perfeição! — pensara — porém, agora, o pensamento era inexistente. Era um corpo sensível, nada mais. Seu olfato regia; seus lábios cobiçavam e seus olhos... Fantasiavam. Não, a realidade não compunha aquela melodia. Não era possível! Estava envolto em delírios! Sua utopia tornara-se o seu mundo...

Continua.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Homenagem aos 181 anos do ilustre poeta Álvares de Azevedo.


SAUDADES

Foi por ti que num sonho de ventura
A flor da mocidade consumi...
E às primaveras disse adeus tão cedo
E na idade do amor envelheci!
Vinte anos! derramei-os gota a gota
Num abismo de dor e esquecimento...
De fogosas visões nutri meu peito...
Vinte anos!... sem viver um só momento!
Contudo, no passado uma esperança
Tanto amor e ventura prometia...
E uma virgem tão doce, tão divina,
Nos sonhos junto a mim adormecia!

Quando eu lia com ela... e no romance
Suspirava melhor ardente nota...
E Jocelyn sonhava com Laurence
Ou Werther se morria por Carlota...
Eu sentia a tremer e a transluzir-lhe
Nos olhos negros a alma inocentinha...
E uma furtiva lágrima rolando
Da face dela umedecer a minha!
E quantas vezes o luar tardio
Não viu nossos amores inocentes?
Não embalou-se da morena virgem
No suspirar, nos cânticos ardentes?
E quantas vezes não dormi sonhando
Eterno amor, eternas as venturas...
E que o céu ia abrir-se... e entre os anjos
Eu ia despertar em noites puras?
Foi esse o amor primeiro! requeimou-me
As artérias febris de juventude,
Acordou-me dos sonhos da existência
Na harmonia primeira do alaúde.

Meu Deus! e quantas eu amei... Contudo
Das noites voluptuosas da existência
Só restam-me saudades dessas horas
Que iluminou tua alma d’inocência.
Foram três noites só... três noites belas
De lua e de verão, no vale saudoso...
Que eu pensava existir... sentindo o peito
Sobre teu coração morrer de gozo.
E por três noites padeci três anos,
Na vida cheia de saudade infinda...
Três anos de esperança e de martírio...
Três anos de sofrer — e espero ainda!
A ti se ergueram meus doridos versos,
Reflexos sem calor de um sol intenso,
Votei-os à imagem dos amores
Pra velá-la nos sonhos como incenso.
Eu sonhei tanto amor, tantas venturas,
Tantas noites de febre e d’esperança...
Mas hoje o coração parado e frio,
Do meu peito no túmulo descansa.
Pálida sombra dos amores santos!
Passa quando eu morrer no meu jazigo,
Ajoelha ao luar e entoa um canto...
Que lá na morte eu sonharei contigo.


12 de setembro de 1852



quinta-feira, 6 de setembro de 2012


O que é este blog? Nada mais que a pura e simples expressão do ócio.

Bom, aqui vai a primeira postagem.
É um pequeno conto que eu redigi na belíssima paisagem dos campos sepulcrais.




O amante incógnito


          Era uma sexta feira do ano de 1982. Os céus pranteavam finas lágrimas de complacência. Chovia, uma garoa serena qual aquelas que aprazem o homem que lê a beirada de uma sacada. Não dessemelhante às nuvens, choravam os homens... Choravam em prol da ignorância que lhes açoitava o cérebro; choravam o padecimento de um semelhante.

          O canto fúnebre seguia as ruelas daquele cemitério povoado, enquanto o silêncio daqueles que repousavam bradava com igual veemência. Todas aquelas figuras trajadas de luto, de morte, em contraste com o tenro semblante daquela que dormia. Morrera uma moça, uma menina linda. Adormecera em sonhos na aurora da vida. Uma moça morena de longos cabelos e tez bem corada; os lábios finos, delicados e discretos, qual a flor que não desabrocha e guarda em segredo o seu viço. Pranteavam, todos, a extinção de um anjo. Insensatos!
          Pairavam na brisa as últimas nênias; a moça sorria, não em razão do sofrimento alheio, mas sim, em decorrência de seu desprendimento. Estava ela, agora, liberta a galgar a amplitude dos prados floridos que outrora sonhara; a tanger novamente o seio da natureza. 
          Enfim, o corpo começou a ser içado às profundezas da sepultura. Os homens fremiam, enquanto as moças buscavam embuçar suas lágrimas com os véus que traziam consigo. 
          — Esperem! — um brado grave manou da multidão. Todos buscaram com os olhos, em consonância, um homem que completava a última fileira. Estava vistosamente trajado com elegante paletó negro e seus adornos costumeiros, porém, algo o distinguia dos demais. O homem,de média estatura, ostentava sobre a face uma belíssima máscara veneziana que lhe encobria apenas os egrégios e negros olhos enigmáticos. Era uma daquelas visões romancistas que a princípio causam espanto, porém, posteriormente fomentam ao estranhamento. O homem aproximou-se da campa em passadas suaves e flutuantes, parecia deslizar harmoniosamente por entre os salões daqueles galantes bailes de antigamente. Todos o admiravam com assombro. Então, enquanto sussurrava palavras incompreensíveis, ele ajoelhou-se diante o cadáver da Diana, tomou sua mão e roubou seus lábios em um beijo quase etéreo, digno da apreciação de todas as criaturas celestes. Fez-se daí, então, um alvoroço tremendo. Todos na multidão queriam palpá-lo, repeli-lo dos braços da moça desonrada ao delicioso sabor de um beijo, porém, a audácia era atributo de poucos.
          — Deixe-a, insolente! — um rapaz tentou golpeá-lo, contudo o desconhecido parecia possuir a força de dez homens. Serenamente o homem ergueu-se e voltou-se à multidão e com a voz retumbante proferiu:
          — Eu a amava. Quarenta mil irmãos não poderiam, somando seu amor, equipará-lo ao meu.
          — E quem é você, bastardo? 
          — Sabei: — todos se calaram — Na almofada do mal é Satã Trismegisto quem docemente vosso espírito consola...
          O silêncio da covardia perseverava entre o conjunto de lábios estáticos. Apenas um dentre o conjunto era possuidor da capacidade de proferir palavras: o desconhecido.







           Sou o sonho de tua esperança,

           Tua febre que nunca descansa,

           O delírio que te há de matar...




Contém citações de Shakespeare, Baudelaire e o grandioso Maneco.
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