"Tenho músicas ardentes,
Ais do meu amor insano,
Que palpitam mais dormentes
Do que os sons do teu piano!"

Álvares de Azevedo

quinta-feira, 20 de setembro de 2012



A dama das flores

Olinda.2012

          Era uma noite belíssima do mês de agosto, período aprazível que antecede a primavera. A lua repousava serena em seu leito de nuvens argênteas. Tudo era noite no manto celeste. No horizonte, entre o caule encurvado dos coqueiros, um par de embarcações artesanais adentrava a infinitude das águas; no reino das terras dois convivas pensavam. Eram amigos, o companheirismo e a algazarra os condenava. Estavam a inebriar-se dentre os invasivos e deliciosos vapores do néctar escarlate, confortáveis dentre as arcadas de um paraíso — um éden pretérito; uma alcova de sonhos irrompida através dos lábios do tempo.  Ambos estavam ali em decorrência dos anseios e saudades que costumeiramente estreitam os laços de uma relação, porém, algo mais os incitava a colher aquelas paisagens ornamentadas com as belezas vetustas do passado: a ausência das flores. Na escassez dos frutos polposos o homem contenta-se em sentar-se à sombra do pomar e apenas contemplar o corpo venusto da natureza. Assim agiam aqueles amantes das flores, buscando, no barro, a fertilidade e a vida que lhes era faltosa.
          Infortunadamente, em consonância com o afoito galgar das estrelas caminhava o tempo. A hora era alta e as estações cessariam o transporte. Era necessário partir e, conjuntamente, assim procederam. À noite e a ebriedade os guiavam dentre os jardins tortuosos e ressequidos. Súbito houve um brado, um dos convivas havia cessado as passadas. Tudo era silêncio, as ruas dormiam... Um anjo cantarolava sobre os degraus de um monumento. Um anjo? Sim — refletiram encantados. Um anjo louro de pele alabastrina e olhos celestes. Olhos de um azul tão intenso, tão atraentes e impiedosos qual a ressaca dos mares límpidos e bravios. Um anjo? Não — refutaram. É a mulher, no ventre da terra, o perfeito reflexo da transcendência.
          Os homens pasmaram; a moça enrubesceu, não pelo fato de ser contemplada, mas em razão da indiscrição com que a admiravam. Estavam fascinados, atraídos por força magnética dissonante a natureza humana. A moça ergueu-se com compostura. Suas mãos traziam um objeto esguio, com a coloração purpúrea espaçada com perfeição. Seus olhos fremiam em lágrimas perfumadas, recendentes qual o conjunto de pétalas que trazia sobre o peito arfante. À noite os engoliu...


                                                                       ~ ~ ~

          — Levanta! Acorda!
          — O que? Eu adormeci?
          — Nós adormecemos.
          A noite era alta. Jaziam nas pedras as flores que outrora dormiam no seio da fertilidade. A ausência tornara-se soberana, porém o bálsamo da matéria fazia da maresia uma fragrância deliciosa. Olinda tornara-se um pulquérrimo jardim perfumado, e aquelas singelas violetas nada tinham a ver. O aroma parecia advindo do colo petulante da própria perfeição do ser, e ambos tinham conhecimento dos fatos antecedentes àquele desfalecimento involuntário. Fez-se daí, então, um alvoroço: ambos partiram, dentre as insignes ruelas de um tempo já findo, em uma busca desvairada, aparentando seguir os comandos de um instinto há muito esquecido dentre as várias etapas da evolução humana. Eram, agora, um conjunto de seres alados, guiados através da essência inelutável, em busca do viço silvestre das flores.
          A noite galgava... O ruído sensato da quietude parecia confundir os sentidos. A impaciência tornara-se insuportável. Aos poucos aquele delicioso encontro parecia ruir sob o vestígio amargo da ilusão. A fantasia era intolerável, não por ser uma quimera, mas sim, pois a realidade, mesmo com seus cruéis atributos, tornava-se a mais bela das circunstâncias.
          — Não adianta, meu amigo. O fato tornou-se uma quimera!
          Seus joelhos cederam conjuntamente. A consciência parecia esvair-se como as águas de um rio intermitente. Suas lágrimas fundiam-se à umidade das marés e, como a ave que mergulha ao encontro das águas, almejou, selar assim, o seu destino.
          — Fiz-me um tolo!
          — Escuta um pouco! Ouves este ruído?
          — Que ruído? O mar parece gritar em meus ouvidos.
          — Esta música. Escuta. Parece o dedilhar das cordas de uma harpa. Escuta! Vai ficando mais veloz, agora aparenta fazer parte do repertório de um baile. 
          — Uma composição? Sim. De onde vem? Parece distante.
          — Parece soar ao pé dos meus ouvidos.
          Um pouco adiante, à esquerda de uma singela igrejinha, um rústico edifício ornamentado emitia as toadas de uma orquestra. Sua fachada era lustrosa, galante... Sedutora.
          Um dos convivas aproximou-se com discrição e, sobre a ponta dos pés ergueu seus olhos à altura de uma fresta. Um aroma agradável, em consonância com a harmonia oriunda das vibrantes cordas do instrumento, furtou seus sentidos da posse veemente do ceticismo. Estava estupefato. Há pouco ficara fascinado... A comparação, diante aquele presente encanto, fazia-se impossível. Que perfeição! — pensara — porém, agora, o pensamento era inexistente. Era um corpo sensível, nada mais. Seu olfato regia; seus lábios cobiçavam e seus olhos... Fantasiavam. Não, a realidade não compunha aquela melodia. Não era possível! Estava envolto em delírios! Sua utopia tornara-se o seu mundo...

Continua.

Um comentário:

  1. Tal qual os românticos que tu tanto veneras, teu texto rebusca a linguagem a um estado quase incompreensível.
    É o princípio de um romance?

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