"Tenho músicas ardentes,
Ais do meu amor insano,
Que palpitam mais dormentes
Do que os sons do teu piano!"

Álvares de Azevedo

domingo, 30 de setembro de 2012


A Dama das flores 

Continuação.




          Com notável desenvoltura e leveza, a moça irrompeu no salão adornado de mil pétalas rodopiando, deslizando, flutuando sobre o lustroso assoalho de mogno... Repleta em vaidade! Seus olhos pareciam tanger a magnitude do indefinido. Estavam vazios, perdidos na imensidão da plenitude. Estavam apáticos... Olhos vazios; olhos sentidos. Dos céus pendiam lágrimas de chuva; lágrimas de sangue. A cada gotícula de um pranto inexausto novas flores desabrochavam do solo infértil. Eram as flores do éden! Eram lágrimas de poesia... Estava vigente a primavera e sua Deusa era a mais bela das orquídeas.
          A moça erguera os delicados braços e abraçara seus dourados fios sobre a nuca despida. Seus ombros moviam-se em perfeita sintonia com a melodia, e sua estreitíssima cintura, encoberta por negro vestido de seda lisa, aparentava guiar os rebentos em seu célere desenvolvimento. Tudo estava em movimento. Era aquele leito de flores o paraíso; os finos e carminados lábios o fruto ilícito; a impossibilidade, o anátema do homem.
          — A nós a vida em flor, a doce vida
              Recendente de amor!
              Cheia de sonhos, d'esperança e beijos
              E pálido langor! — sussurrava a venusta criatura enquanto galgava delirante o prado viçoso.
          A flores exibiam a formosura da primavera; a moça, no entanto, parecia ir além. Sua beleza, seu âmago... Tudo parecia provir do mistério, enigma que fascina. Que deslumbra. Era o encanto da inocência — a alma prolífera e sedutora — a primavera dos homens.
          — Não posso suportar.
          — O que você...
          Um dos convivas excedeu-se e adentrou aquele templo ridente. A moça cedera seu movimento. Estava estática, uma delicada escultura alabastrina. Seus olhos fixaram-se à figura do rapaz, reprovando-o. Seu olhar tornou-se o ópio e o usufruto... Irresistível.
          — Se importaria se eu a convidasse para uma dança? — indagou o intruso.
          O silêncio fez-se absoluto. Apenas dialogavam os olhares. O rapaz avançou uma passada, o retrocesso era impossível e a atração, deliciosa. Em um audacioso ato tangeu aquela delicada cintura com os dedos; ela afastou-se. Ele insistira, porém as frágeis mãozinhas o rejeitavam. Seus corpos pareciam fundir; pareciam bailar entre a doce sinfonia do estalar de centenas de róseas pétalas cedendo sobre a rigidez do concreto. A desarmonia era lei; o encontro, inadmissível.
          — Que queres de mim, cavalheiro? — murmuraram aqueles lábios vultuosos, embebidos com os eflúvios da melancolia..
          — Uma singela dança apenas, minha bela. Vamos, segure a minha mão. Eu a conduzirei com a suavidade dos ventos ao impelir a nau desnorteada.
          — É impossível... — tapando a boca com suas mimosas mãozinhas; cerrando as pálpebras em um olhar desolado, angustiado. — Eu lamento.
          A dama afastou-se com veemência. Sua voz vibrara com a energia de um trovão. Toda a estrutura parecera sacudida. Instantaneamente o rapaz fora ao chão, seus sentidos eram limitados. A escuridão apossou-se de sua consciência. Um segundo apenas, nada mais... Seu templo quimérico havia ruído. As flores haviam regredido, tornaram-se amargas pessoas, e estas pessoas acotovelavam-se dentre a animosidade do festejo. A desordem era plena. O rapaz ergueu-se, estava isolado. Seu comparsa havia desaparecido dentre as massas e seu anjo jamais viera a existir. A ilusão parecia serrar-lhe as fibras do peito com lâmina cega. Aturdido, subiu o conjunto de degraus estacionado ao centro do ornamentado salão, visando, talvez, o único elemento que viesse a consolá-lo. Ele escorou-se ao peitoril da sacada; seu suor fundia-se às lágrimas de desilusão. Uma brisa suave beijou-lhe as têmporas e, dentre o sumo aprazível, um perfume sutil, quase imperceptível, adejava atrevido e deleitoso. Uma solitária violeta adormecia sossegada sobre o parapeito... 

quinta-feira, 20 de setembro de 2012



A dama das flores

Olinda.2012

          Era uma noite belíssima do mês de agosto, período aprazível que antecede a primavera. A lua repousava serena em seu leito de nuvens argênteas. Tudo era noite no manto celeste. No horizonte, entre o caule encurvado dos coqueiros, um par de embarcações artesanais adentrava a infinitude das águas; no reino das terras dois convivas pensavam. Eram amigos, o companheirismo e a algazarra os condenava. Estavam a inebriar-se dentre os invasivos e deliciosos vapores do néctar escarlate, confortáveis dentre as arcadas de um paraíso — um éden pretérito; uma alcova de sonhos irrompida através dos lábios do tempo.  Ambos estavam ali em decorrência dos anseios e saudades que costumeiramente estreitam os laços de uma relação, porém, algo mais os incitava a colher aquelas paisagens ornamentadas com as belezas vetustas do passado: a ausência das flores. Na escassez dos frutos polposos o homem contenta-se em sentar-se à sombra do pomar e apenas contemplar o corpo venusto da natureza. Assim agiam aqueles amantes das flores, buscando, no barro, a fertilidade e a vida que lhes era faltosa.
          Infortunadamente, em consonância com o afoito galgar das estrelas caminhava o tempo. A hora era alta e as estações cessariam o transporte. Era necessário partir e, conjuntamente, assim procederam. À noite e a ebriedade os guiavam dentre os jardins tortuosos e ressequidos. Súbito houve um brado, um dos convivas havia cessado as passadas. Tudo era silêncio, as ruas dormiam... Um anjo cantarolava sobre os degraus de um monumento. Um anjo? Sim — refletiram encantados. Um anjo louro de pele alabastrina e olhos celestes. Olhos de um azul tão intenso, tão atraentes e impiedosos qual a ressaca dos mares límpidos e bravios. Um anjo? Não — refutaram. É a mulher, no ventre da terra, o perfeito reflexo da transcendência.
          Os homens pasmaram; a moça enrubesceu, não pelo fato de ser contemplada, mas em razão da indiscrição com que a admiravam. Estavam fascinados, atraídos por força magnética dissonante a natureza humana. A moça ergueu-se com compostura. Suas mãos traziam um objeto esguio, com a coloração purpúrea espaçada com perfeição. Seus olhos fremiam em lágrimas perfumadas, recendentes qual o conjunto de pétalas que trazia sobre o peito arfante. À noite os engoliu...


                                                                       ~ ~ ~

          — Levanta! Acorda!
          — O que? Eu adormeci?
          — Nós adormecemos.
          A noite era alta. Jaziam nas pedras as flores que outrora dormiam no seio da fertilidade. A ausência tornara-se soberana, porém o bálsamo da matéria fazia da maresia uma fragrância deliciosa. Olinda tornara-se um pulquérrimo jardim perfumado, e aquelas singelas violetas nada tinham a ver. O aroma parecia advindo do colo petulante da própria perfeição do ser, e ambos tinham conhecimento dos fatos antecedentes àquele desfalecimento involuntário. Fez-se daí, então, um alvoroço: ambos partiram, dentre as insignes ruelas de um tempo já findo, em uma busca desvairada, aparentando seguir os comandos de um instinto há muito esquecido dentre as várias etapas da evolução humana. Eram, agora, um conjunto de seres alados, guiados através da essência inelutável, em busca do viço silvestre das flores.
          A noite galgava... O ruído sensato da quietude parecia confundir os sentidos. A impaciência tornara-se insuportável. Aos poucos aquele delicioso encontro parecia ruir sob o vestígio amargo da ilusão. A fantasia era intolerável, não por ser uma quimera, mas sim, pois a realidade, mesmo com seus cruéis atributos, tornava-se a mais bela das circunstâncias.
          — Não adianta, meu amigo. O fato tornou-se uma quimera!
          Seus joelhos cederam conjuntamente. A consciência parecia esvair-se como as águas de um rio intermitente. Suas lágrimas fundiam-se à umidade das marés e, como a ave que mergulha ao encontro das águas, almejou, selar assim, o seu destino.
          — Fiz-me um tolo!
          — Escuta um pouco! Ouves este ruído?
          — Que ruído? O mar parece gritar em meus ouvidos.
          — Esta música. Escuta. Parece o dedilhar das cordas de uma harpa. Escuta! Vai ficando mais veloz, agora aparenta fazer parte do repertório de um baile. 
          — Uma composição? Sim. De onde vem? Parece distante.
          — Parece soar ao pé dos meus ouvidos.
          Um pouco adiante, à esquerda de uma singela igrejinha, um rústico edifício ornamentado emitia as toadas de uma orquestra. Sua fachada era lustrosa, galante... Sedutora.
          Um dos convivas aproximou-se com discrição e, sobre a ponta dos pés ergueu seus olhos à altura de uma fresta. Um aroma agradável, em consonância com a harmonia oriunda das vibrantes cordas do instrumento, furtou seus sentidos da posse veemente do ceticismo. Estava estupefato. Há pouco ficara fascinado... A comparação, diante aquele presente encanto, fazia-se impossível. Que perfeição! — pensara — porém, agora, o pensamento era inexistente. Era um corpo sensível, nada mais. Seu olfato regia; seus lábios cobiçavam e seus olhos... Fantasiavam. Não, a realidade não compunha aquela melodia. Não era possível! Estava envolto em delírios! Sua utopia tornara-se o seu mundo...

Continua.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Homenagem aos 181 anos do ilustre poeta Álvares de Azevedo.


SAUDADES

Foi por ti que num sonho de ventura
A flor da mocidade consumi...
E às primaveras disse adeus tão cedo
E na idade do amor envelheci!
Vinte anos! derramei-os gota a gota
Num abismo de dor e esquecimento...
De fogosas visões nutri meu peito...
Vinte anos!... sem viver um só momento!
Contudo, no passado uma esperança
Tanto amor e ventura prometia...
E uma virgem tão doce, tão divina,
Nos sonhos junto a mim adormecia!

Quando eu lia com ela... e no romance
Suspirava melhor ardente nota...
E Jocelyn sonhava com Laurence
Ou Werther se morria por Carlota...
Eu sentia a tremer e a transluzir-lhe
Nos olhos negros a alma inocentinha...
E uma furtiva lágrima rolando
Da face dela umedecer a minha!
E quantas vezes o luar tardio
Não viu nossos amores inocentes?
Não embalou-se da morena virgem
No suspirar, nos cânticos ardentes?
E quantas vezes não dormi sonhando
Eterno amor, eternas as venturas...
E que o céu ia abrir-se... e entre os anjos
Eu ia despertar em noites puras?
Foi esse o amor primeiro! requeimou-me
As artérias febris de juventude,
Acordou-me dos sonhos da existência
Na harmonia primeira do alaúde.

Meu Deus! e quantas eu amei... Contudo
Das noites voluptuosas da existência
Só restam-me saudades dessas horas
Que iluminou tua alma d’inocência.
Foram três noites só... três noites belas
De lua e de verão, no vale saudoso...
Que eu pensava existir... sentindo o peito
Sobre teu coração morrer de gozo.
E por três noites padeci três anos,
Na vida cheia de saudade infinda...
Três anos de esperança e de martírio...
Três anos de sofrer — e espero ainda!
A ti se ergueram meus doridos versos,
Reflexos sem calor de um sol intenso,
Votei-os à imagem dos amores
Pra velá-la nos sonhos como incenso.
Eu sonhei tanto amor, tantas venturas,
Tantas noites de febre e d’esperança...
Mas hoje o coração parado e frio,
Do meu peito no túmulo descansa.
Pálida sombra dos amores santos!
Passa quando eu morrer no meu jazigo,
Ajoelha ao luar e entoa um canto...
Que lá na morte eu sonharei contigo.


12 de setembro de 1852



quinta-feira, 6 de setembro de 2012


O que é este blog? Nada mais que a pura e simples expressão do ócio.

Bom, aqui vai a primeira postagem.
É um pequeno conto que eu redigi na belíssima paisagem dos campos sepulcrais.




O amante incógnito


          Era uma sexta feira do ano de 1982. Os céus pranteavam finas lágrimas de complacência. Chovia, uma garoa serena qual aquelas que aprazem o homem que lê a beirada de uma sacada. Não dessemelhante às nuvens, choravam os homens... Choravam em prol da ignorância que lhes açoitava o cérebro; choravam o padecimento de um semelhante.

          O canto fúnebre seguia as ruelas daquele cemitério povoado, enquanto o silêncio daqueles que repousavam bradava com igual veemência. Todas aquelas figuras trajadas de luto, de morte, em contraste com o tenro semblante daquela que dormia. Morrera uma moça, uma menina linda. Adormecera em sonhos na aurora da vida. Uma moça morena de longos cabelos e tez bem corada; os lábios finos, delicados e discretos, qual a flor que não desabrocha e guarda em segredo o seu viço. Pranteavam, todos, a extinção de um anjo. Insensatos!
          Pairavam na brisa as últimas nênias; a moça sorria, não em razão do sofrimento alheio, mas sim, em decorrência de seu desprendimento. Estava ela, agora, liberta a galgar a amplitude dos prados floridos que outrora sonhara; a tanger novamente o seio da natureza. 
          Enfim, o corpo começou a ser içado às profundezas da sepultura. Os homens fremiam, enquanto as moças buscavam embuçar suas lágrimas com os véus que traziam consigo. 
          — Esperem! — um brado grave manou da multidão. Todos buscaram com os olhos, em consonância, um homem que completava a última fileira. Estava vistosamente trajado com elegante paletó negro e seus adornos costumeiros, porém, algo o distinguia dos demais. O homem,de média estatura, ostentava sobre a face uma belíssima máscara veneziana que lhe encobria apenas os egrégios e negros olhos enigmáticos. Era uma daquelas visões romancistas que a princípio causam espanto, porém, posteriormente fomentam ao estranhamento. O homem aproximou-se da campa em passadas suaves e flutuantes, parecia deslizar harmoniosamente por entre os salões daqueles galantes bailes de antigamente. Todos o admiravam com assombro. Então, enquanto sussurrava palavras incompreensíveis, ele ajoelhou-se diante o cadáver da Diana, tomou sua mão e roubou seus lábios em um beijo quase etéreo, digno da apreciação de todas as criaturas celestes. Fez-se daí, então, um alvoroço tremendo. Todos na multidão queriam palpá-lo, repeli-lo dos braços da moça desonrada ao delicioso sabor de um beijo, porém, a audácia era atributo de poucos.
          — Deixe-a, insolente! — um rapaz tentou golpeá-lo, contudo o desconhecido parecia possuir a força de dez homens. Serenamente o homem ergueu-se e voltou-se à multidão e com a voz retumbante proferiu:
          — Eu a amava. Quarenta mil irmãos não poderiam, somando seu amor, equipará-lo ao meu.
          — E quem é você, bastardo? 
          — Sabei: — todos se calaram — Na almofada do mal é Satã Trismegisto quem docemente vosso espírito consola...
          O silêncio da covardia perseverava entre o conjunto de lábios estáticos. Apenas um dentre o conjunto era possuidor da capacidade de proferir palavras: o desconhecido.







           Sou o sonho de tua esperança,

           Tua febre que nunca descansa,

           O delírio que te há de matar...




Contém citações de Shakespeare, Baudelaire e o grandioso Maneco.
Obrigado, pessoas! E não esqueçam de deixar seus comentários! :**